É paradoxal falar em geopoética em relação a Pessoa, que tem a reputação justificada por ser um poeta do «espaco de dentro». Ele mesmo reconhece que «vive constantemente no abstrato». Na «tragédia subjetiva», em cinco atos e em versos, em que ele retoma o mito de Fausto — e que foi talvez a grande obra de sua vida, permanecida inacabada —, ele faz seu herói falar no Monológo nas trevas do Vo ato:

Sou mais real que o mundo.

Por isso odeio-lhe a existência enorme,

O seu amontoar de coisas vistas.

Como um santo devoto

Odeio o mundo, porque o que eu sou

E que não sei sentir que sou, conhece-o.

 

Aquele que escreveu esses versos, em que ele descreve sua própria certeza de que «a vida é um sonho », é capaz de ver e de sentir a realidade do mundo exterior? Sim, na medida em que, pela criação dos «heterônimos », ele chega a revirar sua personalidade como uma luva para ter um contato diferente com as coisas. Não, na medida em que, como nós veremos, subsiste em cada uma de suas personalidades adventícias ou factícias uma ambiguidade fundamental, na qual eu vejo, no meu caso, a «verdade» atrás do poeta que nós chamamos Pessoa e que engloba todos os heterônimos: Caeiro, Reis, Campos, Soares e «o próprio» Fernando Pessoa.

Seu lema, sabemos, era o de «sentir tudo de todas as maneiras». Para enfrentar o mundo, para esponjar do mundo a delirante exuberância ou, às vezes, ao contrário, para conjurar dele a total evanescência, ele distribuiu seu ser entre vários eus, dos quais cada um desempenha um papel diferente no que ele denominou seu «drama em pessoas», que é o conjunto de sua obra. Ao Pessoa idealista e crítico, solipisista, quase autista, correspondem assim várias outras Pessoa que têm uma consciência exaltada da sensação e o desejo de uma relação fervorosa e confiante com o espaço, o céu e a terra.

Essa face da personalidade e da obra de Pessoa que ilumina a luz do fora, pode-se vê-la aparecer aqui e lá em seus poemas e seus ensaios, e mais particularmente nas quatro obras de «autores» diferentes: o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, em que o narrador, pedestre de Lisboa, descreve as paisagens urbanas, os céus, as nuvens, o rio, as cenas da rua; o Guardador de rebanhos, do poeta «pagão» Alberto Caeiro, cujo olhar «nítido» sobre o campo das margens do Tejo é o meio de uma presença imediata ao mundo sensível; a Ode marítima, de Alvaro de Campos, em que se manifesta intensamente a imaginação órfica do oceano; enfim, Messagem, do próprio Fernando Pessoa, poema ao mesmo tempo lírico e épico que canta a imaginação mística das terras e dos mares distantes que os navegadores portugueses descobriram há cinco séculos. Cada um desses «autores», veremos, tem uma relação diferente com o real e uma visão diferente do que se chama tradicionalmente a paisagem. Poderíamos, aliás, proseguir esse estudo da paisagem de Pessoa em muitas outras de suas obras: nas elegias críticas e lamentadoras do Cancioneiro, nos poemas sentimentalmente metafísicos do Mad Fiddler, nas Odes de Ricardo Reis, e ainda em outro lugar.


O PEDESTRE DE LISBOA

Após seu retorno definitivo da África do Sul en 1905, na em seus de 17 anos, Pessoa nunca mais viajou. Ele praticamente nao deixou mais Lisboa; E, pode-se mesmo dizer que ele passou todo o resto de sua vida, isto é, trinta anos, em um espaço bastante restrito para que se possa percorrê-lo a pé. Entre a praça São Carlos, onde ele nasceu, e o hospital Saint-Louis dos franceses, onde ele morreu, há apenas um quilômetro. Entre a cidade baixa (a Baixa), onde ele trabalhava, e o Campo de Ourique, onde ele residiu de 1920 até a sua morte, há cerca de três quilômetros. Nessa zona estreita de tecido urbano, ao longo do rio, ele não parou muito de deambular: do castelo São Jorge e da praça do Figueiro, a leste, ao porto de Alcantara, a oeste. Para mim, os dois lugares mais cheios de poesia, mais mágicos, são aqueles em que ainda hoje se pode reencontrá-lo nos cafés que ele frequentava; a praça do Comércio, denominada outrora Terreiro de Paço (esplanada do Palácio), onde a cidade se abre sobre o Tejo, e onde a mesa do poeta, no café Martinho da Arcada, permaneceu tal qual; e o Chiado, na junção entre a cidade baixa e o bairro alto, o Bairro Alto ; lá, no terraço do Brasileira, o café do qual ele gostava, a estátua do poeta, grandeza natura, está hoje sentada para a eternidade, e qualquer consumidor pode sentar à mesa com ele para essa peregrinação que não se assemelha a nehuma outra.

Eu recomendo, evidentemente, a todos os leitores de Pessoa, se eles forem a Lisboa, visitar o Martinho e a Brasileira e refazer, como fazem os peregrinos apaixonados, o itinerário da Baixa ao Chiado. Se eles nao fizerem essa viagem, recomendo dois livros: o volume de Michel Chandeigne sobre Lisboa, publicado pela editora Autrement ; e a Fotobiografia de Pessoa, de Maria José de Lancastre, publicado pela editora Christian Bourgois.

O Livro do Desassossego é o diario que Pessoa atribui a seu outro, o empregado de escritório Bernardo Soares; mas as paisagens urbanas estão aí presentes que se pode lê-lo também como o romance geopoético da cidade com a qual ele entretém uma relação singular, um pouco como Baudelaire com Paris ou Joyce com Dublin.

Seria necessário um longo estudo para fazer o inventário de todos os tópicos da paisagem de Lisboa em Soares: céus, nuvens, chuvas, pores do sol, colinas, rios, ruas, imóveis, passantes etc. Até o momento, apenas, para o meu conhecimento, o filósofo José Gil esboçou um trabalho desse tipo em seu livro sobre Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Para mostrar o clima do universo do pedestre de Lisboa, eu me limitarei a retornar, a título de exemplo, a um texto particularmente característico do movimento de seu pensamento e de seu sentimento — de seu «estado de alma» — diante de uma paisagem, ao ocorrer uma cena de pôr do sol. Trata-se do fragmento 49 da edição francesa do Livro do Desassossego, traduzido por Françoise Laye pela editora Christian Bourgois.

O texto começa com anotações precisas de formas e de cores; em seguida, ele desliza da sensação à impressão – un pouco como para os simbolistas; e finaliza da impressão à meditação, como nos «pores do sol» românticos. Mas, aqui, sente-se, desde o final do primeiro paragráfo, algo quebrar-se na visão da paisagem. A exaltação da cor, da luz e da noite se volta contra ela própria e recai no abismo da consciência de si. A inteligência assume a etapa da emoção, que ela desmascarou após ter pegado em flagrante delito de contraordenação e de impostor. Todos os símbolos que a paisagem sugere ao espírito do andarilho, muito longe de preenchê-lo, acabam por desencantá-lo. Ele não pode nem absorver a paisagem nem se deixar absorver por ela. Sua consciência transborda de todos os lados da paisagem, do mesmo modo que a paisagem transborda de sua consciência. Nao há identificação possível nem de consubstancialidade entre o espírito e o mundo. O pôr do sol que, para o poeta romântico, é o emblema do dia glorioso desaparecido e da noite que virá de igual modo gloriosa, torna-se, para Soares, o sinal da verdadeira vida ausente.


O OLHAR PAGÃO

É preciso operar uma virada mental de 180 graus para passar de Bernardo Soares a Alberto Caeiro. O poeta bucólico do Ribatejo (a região à beira do Tejo, acima de Lisboa) é, como o poeta citadino, um andarilho. Mas, ele não tem nem impressões nem sentimentos nem ideias; apenas sensações, e ainda não são quaisquer sensações: o mundo lhe é dado para ser visto, «nítido como um girassol», desprovido de tudo o que não é perceptível aos olhos. Ele coloca entre parenteses tudo o que se pode saber, compreender, imaginar e experimentar. Ele recusa qualquer interrogação metafísica, qualquer interpretação estética, qualquer jugamento moral. Ele é puro olhar lançado sobre a única realidade que existe, isto é, as coisas. Se ele se diz pagão, é porque ele é totalmente estrangeiro à ideia de um Deus como o do cristianismo, à noção de transcedência ou ao sentido do sagrado. Mas, ele é bem pagão, e não ateu. Sem ter de «acreditar» em qualquer coisa, ele constata como uma evidência a divinidade plural do mundo, resplandecente e diverso. Ele transfere o divino da profundeza escondida para a aparência. O mundo lhe aparece como uma exterioridade absoluta, e em que ele se mantém. Ele renuncia antecipadamente qualquer forma de elogio do real, mas também qualquer lamento; ele renuncia ainda qualquer forma de alegoria ou de símbolo, já que o mundo nao tem outra significação senão a sua própria existência visível.

Alberto Caeiro canta então, de modo paradoxal, em seus poemas, um mundo sensível desprovido de tudo o que, de hábito, a «poesia» faz dele para nós. No limite, já que não há nada para dizer deste mundo, que é o que ele é, e nada mais, a única figura de estilo admissível é a tautologia: uma árvore é uma árvore; uma pedra é uma pedra. A obra de Caiero é a empresa mais original nunca antes tentada para despoetizar o mundo, de modo a fazer surgir nele outra forma de poesia prosaica, uma poesia da banalidade que é o real absoluto.

Eu poderia parar aqui meu comentário. Alguns exagetas de Caeiro o leem, de fato, considerando ao pé da letra tudo o que ele disse, como eu acabo de fazê-lo.

Quais sutilidades se pode querer encontrar em um texto que diz e repete que o mundo existe e que não há nada mais a dizer sobre ele? No entanto, mesmo um leitor desavisado, que não sabe que os poemas de Caeiro são a obra de Pessoa, é imediatamente alertado por alguns sinais que o advirtam que o texto é pegadinha. Aliás, desde o primeiro verso do primeiro poema, logo após o título,  O guardador de rebanhos, o poeta revela o segredo: «Eu nunca guardei rebanhos». E mais adiante, ele dirá «O rebanho são meus pensamentos». Assim, ele se vangloria de ser um homem da terra e de nunca pensar e nos previne que ele é somente pastor metaforicamente e que é preciso lê-lo em segundo plano. Vê-se então que ele diz o contrário do que ele diz. Ele afirma pensar com seus sentidos, com seu corpo, mas, de fato, ele sente com seu pensamento - ou talvez ele sinta e veja apenas em pensamento.

O guardador de rebanhos foi a primeira obra de Pessoa que eu li há trinta anos. Foi com Caeiro que eu descobri Pessoa. E o extraordinário prazer intelectual que eu experimentei naquele momento, e eu sinto ainda, vinha dessa ambiguidade, desse canto duplo, em que o enunciado da realidade mais simples é acompanhado em surdina pela expressão do sentimento mais sofisticado. O que me tocou imediatamente é que em Caeiro a figura de estilo mais frequente, junto com a tautologia, é o aspecto negativo, a preterição. Esse canto da inocência feliz se eleva ao coração da experiência dolorosa da consciência duplicada. Caeiro afirma a realidade das coisas que Pessoa nega, ainda que cada oração de cada poema seja a negação de uma negação.

Mas, então, nesse universo «pagão» de Caeiro, o que se torna a paisagem? O paradoxo é que há menos descrição nos poemas ditos objetivos do Guardador de rebanhos do que na poesia elegíaca do Cancioneiro, que é a principal antologia lírica do «próprio» Pessoa. Aí, para sugerir a evanescência do mundo sensível, ele encontrava notações precisas, como a aurora «cinza-verde, que se empalidecia do canto dos galos», ou a quebra que é o «sorriso audível das folhas». Aqui, para o poeta pagão, nao há nada de semelhante. A paisagem não é mostrada, contudo, mais deduzida. O poema não é uma pintura, contudo, é mais uma problemática da paisagem. Caeiro quer se reduzir a um olhar, mas esse olhar é desencarnado, ele não releva o mundo real e não pertence a um ser verdadeiramente humano.


A IMAGINAÇÃO OCEANO

Eu lembrei que Pessoa tinha passado sua infância e sua adolescência na África do Sul, em Durban. Dessa longa estada, lhe restou uma formação inglesa, mas nenhuma impressão da África. É impossível encontrar em sua obra o menor traço de paisagem africana. Poder-se-ia dizer que ele não viveu em Durban, mas pela magia de suas leituras em Londres, em Newcastle, em Liverpool, onde, contudo, ele nunca esteve. Se, por um lado, ele não guardou nenhuma lembrança da terra africana, por outro lado, ele foi definitivamente marcado pelo espetáculo do oceano, sobre o qual ele viveu durante quatro longas travessias (a estada de anos anos interrompida por uma viagem de férias a Portugal e a Acores).

Nao é na obra do próprio Pessoa que se encontram suas impressões marítimas, mas na de Alvaro de Campos — engenheiro naval, de cultura británica, formado em Glasgow. Foi nele que investiu sua paixão pelas coisas do mar; e ele consagrou esse tema do oceano no mais longo e mais potente de todos os seus poemas, a Ode marítima. Esse texto de mais de mil versos, cuja leitura integral dura mais de uma hora, e cujo tom passa insensivelmente da efusão lírica ao grito frenético; depois, de modo brusco, um pouco antes do final, do grito ao lamento, é hoje a obra de Pessoa mais célebre. Ela tentou um certo número de comediantes; e já vi quatro diferentes interpretações no teatro.

Campos, discípulo de Walt Whitman, é o outro travestido de Pessoa. Como o poeta do Cancioneiro é tímido, crispado et púdico, o da Ode marítima é exaltado. Bem entendido, trata-se de uma personalidade poética, logo, fictícia. Mas, no caso de Campos, contrariamente ao que se passa com Caeiro ou Reis, parece que houve, às vezes, irrupção do outro na vida real. Se, com isso, acredita-se no testemunho da jovem que Pessoa amou, Ofélia, Campos, sob o efeito do álcool, teria assumido o lugar de Pessoa em alguns encontros; e ela estava assustada ao ver surgir esse Sr. Hyde que, segundo ela, não tinha a mesma linguagem que o sábio Sr. Pessoa.

Campos é, de todos os heterônimos, o mais diferente de seu criador. E, no entanto, em um sentido, é o que mais lhe assemelha. Sabe-se que Pessoa, a partir de um certo momento, quis livrar-se de seus heterônimos, que o ocultavam. Ele mandou matar Alberto Caeiro e exilou Ricardo Reis no Brasil. Mas, ele não quis despedir ou assassinar Álvaro de Campos, que, no íntimo, era ele próprio. Campos não desaparece; ele muda, como qualquer ser vivo que envelhece. O poeta da Ode marítima se torna aquele do Tabacaria. Seu coração se quebra, por não ter sabido bronzear-se. O corista dos grandes espaços e da vida moderna, seguro dele e exaltado, torna-se novamente, no grande dia, o que ele nunca deixou de ser secretamente: um homem fraco, angustiado, desesperado, isto é, Pessoa.

A Ode marítima é uma obra imensa e abundante, da qual reterei apenas um breve fragmento, que ilustra o tema central do poema: a imaginação órfica do mar, especialmente, desse mar absoluto que é o oceano. Falo sobre imaginação, porque o que é espantoso, o que toca nesse poema sobre o mar é a ausência de qualquer descrição precisa, de qualquer notação concreta. Todo o texto é um chamado à imaginação; o oceano não é, de fato, visto, mas evocado, ou ainda invocado, apostrofado. E ele é invocado não como matéria, elemento líquido — que dificilmente é assunto —, mas como um espaço, como uma abertura do espaço, como uma presença que é talvez uma ausência infinita.

Se eu digo que essa imaginação do mar é «órfica», retomando assim um termo que leva a pensar no título da revista em que apareceu a Ode marítimaOrfeu, é porque ela é um trampolim para o elã do espírito em direção à ideia da totalidade do mundo visível e invisível. A Ode marítima é uma imensa e dupla metonímia. Nesse poema, o oceano nunca é visto nem pensado, aproximadamente, em si próprio, mas sob a aparência dos navios que sobre ele navegam, ou que sobre ele navegaram, ou que poderiam sobre ele navegar. Essa Ode marítima é, na realidade, mais uma Ode naval; seria então fácil mostrar a importância que tem na obra de Campos, e mesmo na de Pessoa, o arquétipo do navio. Mas, ao mesmo tempo, todas as imagens e todos os símbolos da vida marinha ou naval remetem a outra coisa mais interior e mais profunda. Os navios do oceano que os carrega consigo são fundamentalmente os fornecedores das metáforas pelas quais o poeta vai expressar sua situação espiritual. E aqui é difícil para mim não pensar em Lautréamont, que Pessoa provavelmente não conhecia: sua invocação ao «velho oceano, […] grande celibatário», de fato, o símbolo do que se poderia chamar, na linguagem de Pessoa, o infinito indefinido.


A IMAGINAÇÃO MÍSTICA DAS TERRAS DISTANTES



Foi completamente ao final de sua vida que Pessoa compôs o pequeno livro que, em Portugal, contribuiu mais para a sua glória do que o restante de sua obra. Foi graças a esse livro, Mensagem, que ele deve ter se tornado, uns dez anos após a sua morte, o poeta nacional de seu país, como Camões. Nele, ele aborda, aliás, de um modo completamente diferente, o mesmo tema: ele exalta a glória dos navegantes portugueses que, nos séculos XV e XVI, descobriram terras novas na África, na Ásia e na América do Sul. Os dois mais célebres desses navegantes são Vasco da Gama e Magellan. A originalidade de Mensagem, breve antologia de quarenta e cinco poemas, é de transplantar o mito histórico das descobertas de dois outros mitos nacionais: o do Rei escondido e o do Quinto Império. É também, e sobretudo, nesse sentido, dar — já sendo um mito — um sentido figurado e um sentido anagógico, para retomar os termos de Dante. O sentido figurado é a profecia e a espera de um renascimento de Portugal, da Europa, da humanidade devotada. O sentido anagógico é o sofrimento e a esperança da alma na espera de sua salvação eterna. Assim, o poema nacional é um poema místico. Tudo nele deve ser considerado simbolicamente, mesmo se se tratando, inicialmente, de história e de geografia.

Não é evidentemente assunto aqui. Seria apenas esboçar um estudo de Mensagem. Transmito àqueles que isso interessa à apresentação da obra por Yvette Centeno et Patrick Quillier no volume da edição de Christian Bourgois. Limitar-me-ei a me perguntar o que, nessa perspectiva ao mesmo tempo histórica, geográfica, épica e mística, torna-se a paisagem, o motivo épico. Para mostrá-lo, citarei um único texto, o poema intitulado Horizonte, que é o segundo da segunda parte, intitulada Mar português.

Todo o poema é construído em torno da oposição entre a linha e o horizonte, ainda abstrata quando o lado ainda não emerge, e a profusão mineral, vegetal e animal, que se manifesta pelos sons e pelas cores quando a costa está bem próxima. O último verso resume todo o poema, todo o livro, talvez todo o empreendimento de Pessoa: a transformação da linha abstrata do horizonte em um mundo vivo e reluzente, ao mesmo tempo real e ideal, isto é, a essência própria da criação poética. Ver o invisível se tornar visível, é, diz o poeta, «ir buscar... os beijos merecidos da Verdade ».

Se aproximarmos uns dos outros os quatro olhares diferentes que Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e o próprio do Fernando Pessoa lançam sobre o céu, sobre a terra ou sobre o mar, nos damos conta de que existe, para o poeta que os contém, ao mesmo tempo uma fascínio e uma recusa do real. No Livro do Desassossego, ele o diz sob todos os tons: «Sou um homem para quem o mundo exterior é um realidade interior». Retomando assim a fórmula de Théophile Gautier, ele acrescenta: «Sinto isso não metafisicamente, mas com os sentidos usuais que nos servem para captar o real». É que ele explica as explicações contraditórias que seus exegetas dão sobre seu mal estar. Alguns pensam que ele não sente nada; outros, que eles sentem demais. Mas, no fundo, é a mesma coisa: ele sente demais e esse demais não é nada. Ou ele não sente nada, mas esse nada é tudo. Para alcançar o real, para viver na natureza, para experimentar as qualidades sensíveis do mundo, é preciso ter um corpo que se assuma. Não é o mundo que falta a Pessoa, é o corpo. Seu debate não é nem com as coisas nem com os seres, mas com seu próprio corpo. Ele também sonhou provavelmente que lhe seria «possível possuir a verdade em um alma e em um corpo», e é a sombra desse sonho que torna o seu universo esse lugar que não se pode expressar por aonde ele errou a vida inteira.

Robert BRÉCHON

(Tradução de Jordélia Mendes Brandão)

Trechos de obras de Fernando Pessoa e um dos seus heterônimos :


ODE MARÍTIMA de Álvaro de Campos

Os navios que entram a barra,

Os navios que saem dos portos,

Os navios que passam ao longe

(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) —

Todos estes navios abstractos quase na sua ida

Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa

E não apenas navios, navios indo e vindo.

E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles,

Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,

Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas,

Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,

Roçando pelas cordas, descendo as escadas incómodas,

Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo —

Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,

Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.

Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!

Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina

E eu cismo indeterminadamente as viagens.

Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!

Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!

As solidões marítimas como certos momentos no Pacífico

Em que não sei por que sugestão aprendida na escola

Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos

E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!

A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!

O Índico, o mais misterioso dos oceanos todos!

O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater

De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!

Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,

Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!

Componde fora de mim a minha vida interior!

Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,

Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,

Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas;

Caí, por mim dentro em montão, em monte,

Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!

Sede vós o tesouro da minha avareza febril,

Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,

Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,

Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,

Fornecei-me metáforas imagens, literatura,

Porque em real verdade, a sério, literalmente,

Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,

Minha imaginação uma âncora meio submersa,

Minha ânsia um remo partido,

E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!



HORIZONTE de Fernando Pessoa

 
Ó mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos.

Desvendadas a noite e a cerração,

As tormentas passadas e o mistério,

Abria em flor o Longe, e o Sul sidério

Esplendia sobre as naus da iniciação.


Linha severa da longínqua costa —

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores,

Onde era só, de longe a abstracta linha.


O sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —

Os beijos merecidos da Verdade.

s.d.

Mensagem. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972)