É a uma espécie de deriva intercontinental e intelectual que eu os convido, na qual iremos discutir geopoética e cultura e, ao longo da qual, abordaremos, espero, algumas ilhas interessantes, a fim de delinear os contornos, não de um novo “Novo Mundo”, mas talvez de um novo texto - eventualmente, contexto - mundial.


1.  A CRISE CULTURAL

Comecemos por certa consciência histórica e pelo sentido geral de uma crise da cultura que todo mundo experimenta em diversos graus, segundo tonalidades diferentes.

Lembraremos, em um primeiro momento, das duas cartas sobre A Crise do espírito, escritas por Paul Valéry, que apareceram, em inglês, em 1919 – antes de terem aparecido em francês cinco anos depois:

« Nós, civilizações outras, sabemos agora que nós somos mortais ... Nós ouvimos falar sobre mundos completamente desaparecidos, de impérios naufragados com todos seus homens e todas as suas engenharias, rebaixados ao fundo inexplorável dos séculos com seus deuses et suas leis, suas academias e suas ciências puras e aplicadas, com suas gramáticas, seus dicionários, seus clássicos, seus românticos e seus simbolistas, seus críticos e os críticos de seus críticos ... Mas, esses náufragos, depois de tudo, não eram assunto nosso. Elam, Ninive, Babilônia eram belos nomes vagos e a ruína total desses mundos tinha tão pouco significado para nós que a sua própria existência. Mas, França, Inglaterra, Rússia ... seriam também belos nomes. E, agora, nós vemos que o abismo da história é suficientemente grande para todos. »


Os sinais da crise evocada por Valéry (o “último Atlante”, como ele se descrevia com humor) estão por toda a parte. Um dos mais evidentes é a tentativa de camuflá-la – tomando esta a forma do grande discurso pseudo-cultural espetacular ou a de uma pletora de “criações” ou de “acontecimentos” superficiais, senão derrisórios.


2. A QUEDA DE UM IMPÉRIO

Já que, no âmbito dessas reuniões, a América é nossa referência sem ser, de modo algum, nosso destino, falemos mais precisamente dela. Não para ficarmos excitados com as eleições presidenciais – que é o tema barulhento da atualidade no momento em que escrevo essas linhas, mas para tentar perceber o contexto americano em um nível mais profundo. Para fazê-lo, voltemos, não para os cientistas políticos ou para os sociólogos, mas para os poetas.

Pensemos em Robinson Jeffers (instalado na costa californiana no fim da América), que não deixa de expressar seu desgosto desses Estados Unidos que “se engrossam em império”, e que acaba por lhe virar as costas, estando o olhar mergulhado no oceano Pacífico.

Pensemos em Allen Ginsberg que vive a erosão desse império e que grita seu desepero em A Queda da América (The Fall of America, poems of these States 1965-1971):

Névoa cor de merda que se engrossa no Baltimore
onde o mundo de Poe tocou seu fim – fumaça vermelha,
água preta, nuvens sulfurosas sobre Sparrows Point

Oceano cheio de ferrugem, maré de lixo
quebrando em direção à costa

A última palavra aproximadamente coerente de Ginsberg concerne a seu sonho de um mundo que existiria, talvez, daqui a mil anos: um mundo vivendo os ritmos da terra, “sem automóveis”, com “árvores por toda a parte”, onde se escutaria “epopeias em línguas arcaicas” e “histórias de ilhas”.

Próximo a Ginsberg, para quem é do grito psicopatológico, há Robert Lowell que, em um ensaio de 1953, declara: “Apenas os átomos fissurados que destruíram Hiroshima e Nagasaki podem construir nossa nova “Atlântida”. Todas as unidades estando poluídas, corrompidas, é por um mergulho na fragmentação, na atomização que a gente poderá ver desenhar-se, talvez, um novo “continente”.

Pensemos em Hart Crane, aquele que, após Whitman e Melvill, levou provavelmente mais longe, não pelo “sonho americano” socioeconômico, mas o elo americano mítico-poético. Após ter cantado, em um delírio rapsódico e com extâses platônicas, a ponte de Brooklyn - maravilha da técnica moderna, mas, sobretudo, para o Crane, símbolo de um lugar entre o antigo e novo. Após ter evocado a navegação e a visão de Colombo, a cultura ameríndia, os vagabundos errando de Estado em Estado, conscientes do “vasto corpo da América”, a epopeia americana moderna de Crane, A Ponte (The Bridge), termina em um bar de South Street, onde um colchonete, antiga baleeira que conheceu o ártico, o Panamá e o Yucatan e que é consciente das “fronteiras do espírito”, escuta uma canção, Atlantis Rose (Rose da Atlântida) em um juke-box, dizendo para si que “a estrela boia queimando em um golfo de lágrimas”. Apesar disso, o poema continua e termina em um hino muito elaborado na Atlântida ideal; não se acredita mais nisso. E Crane mesmo não acredita mais nisso. Em seu último livro, situado não mais no continente americano, e sim no mar do Caribe (Key West: an Island Sheaf), ele declara: “Deixem-nos tranquilos, ídolos futuristas” (Leave us, you idols of Futurity — alone). E se o grande bebedor de Bacardi que ele se tornou fala ainda dos Estados Unidos, é para dizer que a sua “fé em algo distante” está agora extinta. Resta apenas “a água e um pouco de vento”.

Nós chegamos a um limite litoral em que se fala de um fim de civilização, de isolamento e, vagamente, de Atlântida. A oitava e última sessão da Ponte de Hart Crane, que traz na epígrafe esta frase de Patão: “A música é o conhecimento do que, na harmonia e no sistema, lida com o amor”, e se intitula, precisamente, Atlântida.

Antes de continuar nossa peregrinação insular, parece oportuno de retomar o célebre mito platônico; talvez o maior mito do Ocidente.


3. A ATLÂNTIDA ARQUETÍPICA

Qualquer civilização necessita de sua atopia. Esta pode se situar no tempo e no espaço – ou nos dois. A burocracia celeste chinesa necessita de sua ilha taoísta, onde crescem os cogumelos da longevidade. No Ocidente, a atopia tende à utopia, ou seja, ao modelo do mito-político. É o caso de Platão, particularmente, em Timeu e no Crítias (legenda: Atlantikôs), que seguem A República.

Timeu, filósofo pitagórico, deve fazer, diante de seus amigos, uma apresentação oral sobre a cosmologia, mas antes de se lançar nisso, ele conta uma história. Esta história remonta a Solon, um dos Setes Sábios, que tinha falado sobre isso a Dropide, bisavô de Timeu que, por sua vez, tinha tocado duas palavras sobre isso com Crítias, seu avô, homem político que fazia parte do grupo oligárquico dos Trinta. Ao longo de uma viagem ao Egito, Solon tinha se entretido com um pastor da cidade de Saís, no delta do Nilo. Este tinha lhe dito que os gregos eram crianças, “sempre jovens na alma”, qui não tinham memória nenhuma, “sem saber embranquecer pelo tempo”. Eles sabiam apenas que a divinidade fundadora de Sas, Neith, era a mesma que a de Atena? Eles se davam conta de que Atenas era, de fato, mais antiga do que o Egito, já que o povoamento de sua região remontava a um pouco de esperma que Hefesto tinha deixado cair sobre Gé, a terra? Eles estavam a par do fatoque a história procedia por ciclos, dos quais cada um se terminava por um cataclismo que deixava poucos traços?

Há nove mil anos, por exemplo, uma grande potência marítima, um “império vasto e maravilhoso”, situado em uma imensa ilha (“maior do que a Ásia e Libya reunidas”) a oeste das colônias de Hércules (uma ilha pela qual se pode atingir outras ilhas e, enfim, o continente “situado em frente”), tinha lançado uma ofensiva contra Atenas, com a finalidade de aumentar seu poder, que já se estendia até o Egito e a Tyrrhenia. Atenas tinha resistido, com sucesso, mas o que carregava o golpe fatal a Atlântida, ilha fértil e imensamente rica, não foi o exército grego, mas um terremoto e um dilúvio que, engolindo todo o exército ateniense, tinha levado ao desaparecimento de toda a ilha imersa: “Daqui vem o fato de que, em nossos dias, o mar permanece impraticável e inexplorável naquele lugar, por ela estar encoberta pela lama que, precisamente, sob a superfície da água, a ilha depositou se deteriorando...”.

Pode-se ler nesta fábula apenas uma pequena lição política. Platão não gostava da Atenas onde ele vivia. Ela se assemelhava muito à Atlântida decadente que ele imaginava. Os Piraeus, em particular, com seu comércio e seu barulho, pareciam para ele um lugar de perdição e o início do fim. Era urgente para ele guardar uma imagem da bela e boa comunidade, de manter vivo o paradigma da Cidade tal como ele a desejava. Esse foi o objetivo de A República. Mas, por que ele começa a inventar um mito, ele que, em A República, declara precisamente: “Nós não somos poetas, mas fundadores do Estado. Pertence a nós conhecer os modelos, não compor mitos”. Foi ele quem, primeiramente, quis fazer uma clara distinção entre muthos et logos. O que se passa então no espírito de Platão? O pensamento mítico está se vingando? Poder-se-ia dizer que se trata aqui de um momento de cansaço, senão de desespero, talvez o recurso a procedimentos desatualizados, simpáticos, mas infantis. Platão se desesperava por Atenas, se desesperava por A República, se deseperava por sua teoria: a gente se lembra da evocação da sinistra planície de Letes, ao final de A República, e lê-se no Timeu apenas o território do Ático, vítima da erosão, devido ao desmatamento, resta apenas “o esqueleto de um homem doente”. É quando os caminhos estão bloqueados, quando tudo parece perdido, que se sonha com outros lugares, que se mergulha no sonho e na nostalgia. E, Atlântida, ao mesmo tempo, modelo - no início – como a arcaica Atenas - e anti-modelo - ao final, como a Atenas contemporânea de Platão - é, antes de tudo, o outro lugar.

Mas, é possível que exista no espírito de Platão outra coisa: algo que tenha extraído, ao mesmo tempo, a poética e a geografia.

Eu vou avançar um pouco mais longe nesse sentido.


4. DO MITO AO MOVIMENTO

É dito em Timeu que, si Solon, ao voltar do Egito, cheio de informação recebida em Saís, tinha realizado seu desejo de escrever um poema, ele teria se tornado “um poeta maior do que Hesíodo ou do que Homero”. Pode-se perguntar se, na cabeça de Platão, não emerge, vagamente, a noção de outra poética. Mais livre do mito, mais próxima do conhecimento, sem ser abertamente filosófica ou pesadamente didática, e que se passa, quase apesar dele, em um espaço maior do que o espaço político estabelecido.

Que Platão seja nutrido de poesia, é certo. Sua Atlântida se assemelha, ao mesmo tempo, à “ilha da filha de Atlas, aos confins do mundo” e ao jardim dos Hesperides, filhas da Noite, de que fala Hesíodo, e à ilha de Phaecia na Odisseia. Ele estava informado ainda sobre “coisas da Ásia” – a cidade da Atlântida se assemelha muito à Babilônia de Heródoto, talvez às cidades fenícias de Tiro e Sidon. E me agrada ainda de imaginar que ele estava um pouco informado do que se poderia chamar o outro Mediterrâneo: a dos Povos do Mar (os que os Egípcios chamavam Akaiwasha, Danuna, Shardana…), a da expansão fenícia, das margens saarianas, a das costas italianas, ibéricas, gaulesas, a dos templos de Malta, dos nouraghes (voltas de observação) de Sardenha e dos Baleares, a dos megalíticos da Espanha meridional, aquela que é mais antiga do que o Mediterrâneo micênica, mais antiga do que o Egito.

Estou inventando um Platão geopoético...

Para permanecer próximo ao Timeu e ao Critias, pudemos ver no afundamento da Atlântida uma referência - frequentemente coletivo, informação? -  ao desaparecimento brutal no século XV antes J.-C, devido à uma erupção vulcânica seguida de maremoto, da civilização da Creta minoica. E os “boatos” geográficos se estendem mais longe a oeste do Mediterrâneo até o Atlântico. A descrição dos traços deixados pelo afundamento da Atlântida não evocaria o mar dos Sargaços? Quem sabe quais rumores de navegações distantes percorreriam as ondas e os portos do Mediterrâneo? Tudo leva a crer que os marinheiros mediterrâneos (Cretenses da idade do bronze, fenícios e micênicos) foram informados do que se passava no mar Externo, o mar das Trevas e na parte noroeste deste mar (Théopompus de Chios fala de uma travessia “hiperbórea”), particularmente, do lado das ilhas britânicas. O desaparecimento sob o mar da Atlântida poderia ser uma reminiscência do abaixamento de terras como o Dogger Bank. Quando Plutarco fala de um “culto de Cronos”, quando Hecataeus de Abdera evoca um enorme “templo de Apolo” sobre as ilhas de Hiperbóreos, pensa-se em Stonehenge. Plutarco tinha, certamente, informações celta-britânicas e, é muito possível que, bem antes dele, rumores de viagens distantes a partir das ilhas do Oeste, seja pela rodovia do norte (Orcades, Shetlands, Feroés, Islândia, Groelândia), seja pela rodovia do sul (Açores, canárias) tenham atingido o Mediterrâneo. Ninguém sabe muito bem até aonde foi o monge-navegador Brandão e outros de sua espécie: quando os primeiros portulanos começam a aparecer, a “ilha de São Brandão” flutua aproximadamente em todos os lugares, desde os Açores até a costa meridional da América.

Em seu De imagine mundi (1130), Honorarius d’Autun fala da ilha Perdida: “Há, em algum lugar, no oceano, uma ilha denominada Perdita. Ela ultrapassa, com charme e fertilidade, todas as demais terras, mas ela é desconhecida dos homens. De tempos em tempos, pode-se, por acaso, apaixonar-se por ela. Mas, se a buscarmos, não a encontraremos. É por isso que a chamamos de ilha Perdida. Diz-se que é nesta ilha que embarcou Brandão”.

É assim que nascem Brasil, Antilhas – e a América.

Minha finalidade não é apenas de realizar traçados geográficos, mas de guardar a noção de ilhotas de pensamento, de um arquipélago mental. Em suas Adventures of Ideas, Alfred North Whitehead evoca a descoberta das costas: a do mar Negro, a do mar Mediterrâneo do Oeste, a do Atlântico, a do Egito, da Índia e da China, insistindo na importância que tinha essa navegação costeira para o despertar e para o desenvolvimento do pensamento. Ao falar sobre as ilhas, sem jamais perder o movimento e a emoção, eu gostaria de guardar esta áurea platônico-atlântica, poético-intelectual.

É por isso que, em vez de buscar a Atlântida sob o Atlântico Norte ou sob as areias do Saara, eu me volto agora para A Nova Atlântida de Francis Bacon, que data de 1624.


5. DO MOVIMENTO AO MÉTODO

« Deixamos o Perú – onde nós tínhamos permanecido durante um ano – e alçamos vela em direção à China e ao Japon, pelos Mares do Sul [...]. Tivemos ventos de leste favoráveis [...] durante cinco meses ou mais. Depois, o vento virou e se estabeleceu no oeste durante dias e dias, ainda que nós não pudéssemos, por assim dizer, avançar e que estivemos, às vezes, prester a dar meia volta. Ventos violentos e fortes se levantaram em seguida, assoprando do sul-sudeste; eles nos lançaram ao norte, apesar de todos os esforços que nós empreendemos: nossa comida começaram a faltar, ainda que nós tivéssemos reposto. De modo que, estando no belo meio da maior desolação marinha do mundo, sem comida, nós nos consideraríamos como homens perdidos [...]. Ora, aconteceu que, no dia seguinte, próximo à noite, à distância de um kenning (ou seja, a vinte milhas marinhas), nós vimos, em direção ao norte, como espessas nuvens, o que deu alguma esperança de encontrar uma terra, pois nós sabíamos que esta parte dos mares do Sul era ainda desconhecida e que podia, então, esconder ilhas ou continentes que não tinham sido ainda descobertos (1). »

A Nova Atlântida é um pouco o testamento daquele que, em uma carta de 1592, à Lorde Burleigh, declarou que, se ele nunca tivesse tido grandes ambições cívicas, ele teria projetado “vastos fins contemplativos” e que ele tinha “levado para a província todo o saber humano”. Desgostoso, ainda muito jovem, pela discussão escolástica abstrata e, mais tarde, pela experimentação cega, aborrecido pelo sistema de educação em curso: “uma sucessão de mestres e de alunos, na qual um problema permanece um problema; uma resposta, uma resposta”, e diante da rede de pesquisas estabelecidas: “Quando todos os homens, de todas as idades, estiverem reunidos, toda a espécie humana se entregando à filosofia e todo o globo se cobrindo de academias, de colégios, de escolas, de sociedade de cientistas, contudo, sem uma história natural como a que prescrevemos aqui, a filosofia e as ciências não fariam, em nenhum caso, progressos verdadeiramente dignos da razão humana”. Bacon tinha chegado a um acordo sobre a necessidade de uma reforma intelectual radical. A “história natural” da qual ele fala, a Sylva sylvarum (a Floresta das florestas) fazia parte em seu espírito com o Avanço do saber (De augmentis Scientarum) e o Novum Organum, da grande “instauração” (Instauratio Magna) que ele queria empreender.

Para Bacon, os espíritos estavam obstruídos por hábitos de pensamento e de linguagem que impediam, não apenas de conhecer “o movimento secreto das coisas”, mas de ver claramente nada. Quanto à pesquisa, seja ela filosófica, seja ela científica, ele se situava em um quintal muito limitado. Seria necessário, em termos pictóricos (Bacon não os negligência, ao dizer que os gregos não tinha realmente compreendido o que os povos mais antigos tinham insuflado “às flautas e às trompetas” de seus mitos), sair do mundo mediterrâneo e ir além das colônias de Hércules, esses limites impostos ao conhecimento e à ação. Não se trata aqui de uma aventura, mas de uma exploração metódica – sem excesso de metodologia, pois uma metodologia muito rígida pode bloquear o espírito, do mesmo modo que uma imaginação desenfreada, oferecendo um pouco de alimento ao passar, acaba por encobri-la. É questão de ir “completamente fora das vias da imaginação”, completamente fora dos sistemas, mantendo uma ordem dispersada, seguindo linhas quebradas, deixando o lugar ao acaso. Diderot, que admira Bacon (e dedica a Enciclopédia), dito isso de modo que Bacon teria provavelmente aprovado: “A razão é trazida para permanecer em si mesma, e o instinto para se expandir para fora – o instinto visto incessantemente olhando, experimentando, tocando, escutando ...” É que Diderot não é mais cartesiano do que Bacon, que não acredita nem no espírito puro nem no valor absoluto das matemáticas. Bacon não visa ao “domínio da natureza” (que é o projeto da modernidade, baseado em uma divisão entre o sujeito e o objeto), mas a “um casamento entre o espírito humano e a natureza das coisas”. Com esse projeto, Bacon ultrapassa, ao mesmo tempo, o Antigo Mundo (Aristóteles e Platão) e o Novo Mundo (Descartes), seu “mundo” sendo ainda mais “novo”, ainda mais “em outro lugar”.

O Opus, tel como ele projetava - organização da pesquisa, novas instituições fundadas sobre novas concepções - devia mudar a vida completamente. Ele esperava realizar esse opus ou, ao menos, lançar as bases desse projeto, sob o reinado de Jacques 1er da Inglaterra e VI da Escócia, em seguida, sob o reinado de Elisabeth 1er; porém, decepcionou-se: no máximo, ele pode criar, no reino de Elisabeth, um jardim botânico, um zoológico, um museu de invenções e uma biblioteca. Daí o recurso ao mito da Nova Atlântida, para guardar viva a visão de todo o programa: “Esta fábula, escreve Rawley, o editor póstumo do texto, meu Mestre a concebeu a fim de poder apresentar aí um modelo ou uma descrição de um colégio que seria fundado em vista da interpretação da natureza e da produção de grandes e maravilhosas obras para o bem de toda a espécie humana, e que seria chamado a Casa de Salomão, ou ainda, o Colégio da Obra dos Seis Dias. Sua senhoria conduziu o seu trabalho antes o bastante para que aquele aspecto, ao menos de seu projeto, fosse finalizado. O modelo proposto é, certamente, muito vasto e muito elevado para ser imitado em todos os pontos; contudo, a maior parte das coisas descritas aqui não ultrapassam as capacidades humanas. Sua Senhoria pensava também em compor nesta fábula um sistema de leis, o melhor molde ou a melhor constituição para um governo; mas ele previa que isso seria aqui um processo demorado e ele foi desviado disso por seu desejo de reunir os elementos de sua História natural, sua preferência indo de longe até esse último trabalho...”.

Contrariamente a Platão, a Compostela, a Thomas More e a tantos outros, Bacon não projeta uma utopia política. Ele inventa um espaço atópico para um programa, uma obra geral e genial, que não conseguiu situar-se no contexto político-cultural que ele conhecia. A instituição maior da ilha de Bensalem é, de fato, um instituto de pesquisa e de criação que reúne “comerciantes de luz”, “compiladores”, “semeadores”, “artesãos”, “intérpretes da natureza” visando aumentar não apenas o saber, mas o bem estar, a felicidade de estar na terra. Para Bacon, tudo deve ser traduzido ao longo em termos de vida. Na lista de objetivos desejáveis que se encontra ao final de A Nova Atlântida, lê-se: “prolongar a vida”, “encontrar os maiores prazeres para os sentidos”, “tornar os espíritos felizes...”.


6. A VISÃO POÉTICA

Antes de continuar nossa genealogia atlantidiana, nossa exploração atlântica, nossa busca por um mundo “fora do mundo”, mais novo do que o Novo Mundo, eis um poema de W. H. Auden que fala da dificuldade da viagem e das caricaturas e delírios que podem acompanhá-lo, a tal ponto que se corre o risco de perder o verdadeiro traço disso:

Obsecado pela ideia
De atingir a Atlântida,
Você, evidentemente, achou
Que apenas a Nave dos Loucos
Fez a viagem este ano,
Porque se prevê tempestades
De uma violência excepcional
E que você deve estar então pronto
A mostrar-te suficientemente absurda
Para ser aceita pelo bando
Fingindo ao menos
Amar o álcool, a força e tumulto.
Se, como é possível, as tempestades
Deviam te levar a molhar uma semana
Em algum velho porto de Ionia,
Fale com seus sábios astutos,
Pessoas que experimentaram a impossibilidade
De um lugar tal como a Atlântida;
Aprenda a lógica delas, mas note
Que sua sutileza trai
Uma simples, enorme tristeza;
Eles te ensinarão
a maneira
De duvidar para que você possa crer.
Se, mais tarde, você vier a fracassar
Sobre os promontórios de Trace,
Onde, toça na mão, toda a madrugada,
Uma raça bárbara e nua
Dá saltos furiosos aos sons
Da concha e do gongo dissonante,
Sobre esses rios duros, selvagens,
Arranque suas roupas e dance,
Pois, se você não é capaz
De esquecer completamente
A Atlântida, sua viagem
Nunca terá fim.
Do mesmo modo, se você chegar
À alegre Cartago
Ou em Coríntio, participe
De suas diversões sem fim
;
E se, em um bar, uma garota
Diz, acariciando seus cabelos:
“Querido, a Atlântida é aqui”,
Escute com grande atenção
A história de sua vida: se você
Não sabe logo que
Cada refúgio que se esforça
De assumir o papel da Atlântida, o que
Reconhecer como verdadeiro?
Supondo que você fracasse enfim
Perto da Atlântida e comece
A terrível viagem a pé
Através das florestas sinistras e das estepes
Congeladas, onde estarão todos logo perdidos,
Se, abandonado, você se encontrar
Rejeitado por todos os lados,
Pedra e neve, ar vazio e silêncio,
Lembre-se de seus nobres mortos
E honre seu destino,
Você, viajante atormentado,
Estranho dialético.
Tropece e se alegre;
E se, talvez, tiver chegado enfim
Até o último colo, você cair,
Com a Atlântida inteira que brilha
A teus pés, sem que você possa
Descer aí, orgulhe-se, contudo
De perceber essa Atlântida
Com uma visão poética ... (2)

Como se constatou, de Platão a Bacon, é a uma visão poética que se chegou até aqui. E já é algo manter aberta assim uma área de respiração e inspiração. Mas, pode-se tentar, ainda, dar à visão um fundamento – eventualmente, uma fundação, o que implica o questionamento radical das premissas do pensamento estabelecido, assim como qualquer condicionamento sociológico e psicológico.


7. O CHINÊS DE KÖNIGSBERG E O HIPERBÓREO DE GENES

Convidando à viagem “atlântida”, Bacon sempre insistiu na necessidade de prudência e de precisão, de ordem e de organização, “pois, ele diz, No Grande Parto do tempo, a ilha da verdade está envolvida por um potente oceano no qual inteligências irão provocar naufrágios nas tempestadas da ilusão”.

Um século e meio mais tarde, no capítulo III da Crítica da razão pura, Emmanuel Kant ecoa Bacon, ao usar, quase precisamente, os mesmos termos: “Nós temos agora percorrido o país do entendimento puro, examinando cuidadosamente cada parte; nós o medimos também e fixamos para cada coisa o seu lugar. Mas, o país é uma ilha que a natureza aprisiona em limites imutáveis. É o país da verdade (palavra sedutora), cercado por um oceano vasto e tempestuoso, verdadeiro império da ilusão, onde muitos nevoeiros espessos, bancos de gelo sem resistência e prestes a fundir oferecem o aspecto enganador de terras novas, chamam, sem cessar, por meio de vãs esperanças, a atenção do navegador que sonha descobertas e o engajamento em aventuras às quais ele nunca sabe recusar e que, no entanto, ele nunca pode levar ao fim. Antes’ de nos arriscarmos por essa terra para explorá-la em todas as suas extensões e nos assegurar se há algo para esperar, nos será útil de lançar ainda um olhar sobre o mapa do país que nós vamos deixar e de nos perguntar inicialmente se, por acaso, nós não poderíamos nos fixar (3)”.

Para Nietzsche, Kant era prudente demais. Para ele, há mais urgência, senão, mais confiança, ao menos, mais ímpeto desesperado. Por essa razão, ele escreve em seus cadernos (Notas póstumas, 1885-86): “Nós desconhecemos ainda em qual sentido nós seremos empurrados, uma vez que nós teríamos abandonado nosso antigo território. Mas, este mesmo solo nos comunicou a força que nos empurra agora [...] para países sem limites [...]. Nossa força não nos permite permanecer neste solo antigo e descomposto [...]. Vale mais perecer do que se tornar enfermo e venenoso. Nós sabemos que há outro mundo”.

 

8. CAMPOS DE ENERGIA

Com Bacon, Kant e Nietzche, nós estamos lidando com uma linha científico-filosófica sempre clássica o suficiente – ainda que, com alguns cantos do Zarathoustra e com a autobiografia Ecce homo, já alternemos para outra coisa. Mas, com D.H. Lawrence, e ainda mais, com Antonin Artaud, surge algo de mais extravagante.

É na introdução à Fantasia of the Unconscious que D.H. expõe sua filosofia íntima, cuidando de precisar que essa “filosofia”, que essa “cosmologia” tem origem nos romances e nos poemas. Mas, em determinado momento, ele sentiu a necessidade de extrapolar, a partir de textos de criação, a fim de estabelecer uma cartografia: “uma atitude mental diante de si e das coisas em geral”. No final das contas, diz Lawrence, a arte depende de uma filosofia, de uma metafísica, de um contexto ideacional. Em nossa época, a visão, a metafísica está puída. É preciso retomar tudo pela base, renovar o tecido. É o que Lawrence empreende fazer.

No preâmbulo, a fim de não ser posto em questões de pormenor, Lawrence tem o cuidado de precisar que ele não recebeu nenhuma formação arqueológica, etnológica ou antropológica profissional. Ele é então decididamente autoditata – necessariamente, autodidata; o conhecimento que o atrai é desconhecido e não tem nome. O que ele encontrou, aqui e acolá, são indícios. E ele nomeia suas fontes: Platão, os filósofos pré-socráticos, o mitológico Fraser, o psicanalista Freud, o historiador das culturas Frobenius. Esse “poeta” – é o nome que se dá geralmente aquele que não entra nas categorias estabelecidas – vai falar em nome da ciência: “Existe, ele afirma, um imenso campo da ciência que está para nós completamente fechado – é a ciência da vida”. Nossa ciência, afirma Lawrence, é uma ciência do mundo morto. Perdeu-se algo de essencial. No mundo pagão, nos quais o Egito e a Grécia eram os últimos representantes, existia “uma ciência em termos de vida”. Essa ciência, declara Lawrence, tendo deixado o lugar à razão racional, gerou, para tornar magia ilusória, charlatanismo sórdido. E Lawrence então para elaborar sua fábula geo-histórica para ele: “No grande mundo que precedeu o nosso, uma grande ciência, uma grande cosmologia se ensinava no mundo inteiro, na Ásia, na Polinésia, na América, na Atlântida e na Europa ... No período em que o geólogos chamam de período glaciar, as águas do globo tiveram de ser recolhidas em lugares elevados, vasto mundo de gelo. E as camas marinhas de hoje tiveram de ser relativamente secas. Assim, os Açores surgiam da planície da Atlântida, lá onde se estende agora em ondas o Oceano Atlântico, e do grande continente pacífico se elevavam as Marquises e as ilhas de Páscoa. Naquele mundo, os homens viviam, sabiam, ensinavam e comunicavam por meio de toda a terra. Os homens erravam da Europa para a América, da Atlântida ao continente polinésio. A ciência da vida era universal. Então, sobreveio a fonte dos glaciares e o dilúvio. Os refugiados dos continentes engolidos se reuniram nas alturas da América, da Europa, da Ásia e das ilhas do Pacífico. Alguns degeneraram, para se tornarem os homens das cavernas, mas outros reteram sua perfeição de vida e sua beleza, tais como os indígenas dos mares do Sul; e alguns erraram na África, enquanto que outros, druidas, etruscos, caldeus, ameríndios, chineses, recusam de esquecer e continuavam a ensinar a antiga sabedoria”.

Segundo Lawrence, restam hoje apenas formas simbólicas, ritos, mitos mal compreendidos, grafismos, figuras místicas e trechos de música desta antiga sabedoria. São essas coisas aí que atraem o interesse dos espíritos de hoje, ávidos por locais e por fontes, por cura e por inspiração. Vai ser necessário muito tempo para encontrar a linguagem completa e, provavelmente, nos enganaremos muito; porém, existe pelo mundo rudimentos, elementos de sintaxe, para os que têm a coragem e a força de tentar reuni-los.

Eis o credo, o programa de D.H. Lawrence.

Pode-se negligenciar sua fábula, pode-se manter suas distâncias em relação às suas realizações, dizendo para si que há aí um campo de energia de primeira ordem.

Arthaud está próximo de D.H. Lawrence, mas ainda mais exasperado, mais tomado pelas situações clínicas, ainda mais ávido de um lugar, de um lugar habitável. Esse lugar, ele se persuade de que ele encontrou no México, entre os Tarahumaras: “Vi [...] no fundo da serra Tarahumara, o lugar dos reis da Atlântida tal como Platão descreve nas páginas do Critias”. Nem mesmo insistemos no fato de que Artaud se ilude: o que compte, além da ilusão psico-cultural, é o jogo de sua inteligência. O que Artaud vê nos Tarahumaras, é “um desafio a esse tempo”. Eis os espíritos qui têm “a ideia mais elevada do movimento filosófico da Natureza”, que têm “uma ideia geométrica ativa do mundo”, e que vivem em um país “literalmente assombrado pelos sinais”. Que o platô dos Tarahumaras seja sim ou não um lugar privilegiado, pouco importa. O que conta é “movimento da Natureza”, “uma ideia do mundo” e “dos sinais” ...

9. CASA ATLANTICA

No presente momento, isso não espantará ninguém se eu digo que é todo o movimento que eu acabo de descrever, desde a crise da civilização atual até o sonho de alguns isolatos, passando pela pesquisa atlantidiana, que levou à gênese do Instituto (internacional) de geopoética.

Mais particularmente, em um dado momento (e isso poderia fazer parte de uma sequência de mensagens em uma rede geopoética futura), eu tinha pensando em uma espécie de Academia atlântica...

Nesta Academia do Atlântico e da aurora, esta Casa atlântica figuraria (eu escutava sua voz em meio ao rumor confuso), além desses espíritos que eu acabo de evocar, o Frobenius cujo nome surgiu no texto de D.H. Lawrence. Lawrence leu provavelmente, na Alemanha, os textos escritos de Frobenius sobre a Atlântida: Auf dem Wege nach Atlantis (1911), Volksmärchen der Kabylen (1921), Atlantische Götterlehre (1922).

Nesse “campo”, nesse “canteiro” atlântico, figurava ainda Bachelard, aquele que, em Le Nouvel Esprit scientifique (O Novo Espírito Científico), fala não apenas de um “alargamento do espírito científico”, mas da noção de “saúde cósmica”. Ao lado de Bachelard, na mesma ordem de preocupação, Novalis que, em seus Disciples de Saïs (Discípulos de Saís) - que restabelece diretamente as relações com o Critias de Platão - evoca esses “caminhos múltiplos ao longo dos quais se pode “ver aparecer estranhas figuras” – “sobre conchas, nas nuvens, no exterior e no interior das montanhas, pessoas, plantas”, e que fala do verdadeiro Natursinn (sentidos da natureza), que faz com que tenhamos prazer com a natureza ao mesmo tempo em que a estudamos. Novalis faz a ponte entre os historiadores da cultura, os filósofos e os poetas. Entre os poetas, em um sentido mais específico, um certo Álvaro de Campos (inventado por Fernando Pessoa) que, na sequência de Nietzsche, mas modificando alguns aspectos do mito deste, escreve:

Proclamo
O Super-homem será, não o mais forte, mas o mais completo!
Proclamo
O Super-homem será, não o mais resistente, mas o mais complexo!
Proclamo
O Super-homem será, não o mais livre, mais o mais harmonioso!
Proclamo tudo isso sobre a barra do Tejo, as costas viradas para a Europa, os braços levantados, olhando o Atlântico e saudanto abstratamente o Infinito!
(4)

Ao ler, pela primeira vez, eu amava a força dessas palavras, dizendo para mim mesmo que podia talvez aproximar-me do Super-homem e do Infinito.

E, depois, havia Saint-John Perse, nascido nas ilhas da América que, em uma carta de 1957, escreve: “Nós que somos do Atlântico” foi, por três séculos, uma expressão corrente na linguagem de nossos antepassados”. Ele volta a isso na biografia que ele fez na introdução para as suas obras na edição da Pleiade em 1972: “Tão importante e decisiva foi a influência do fato atlântico na formação humana das primeiras Antilhas Francesas que seus filhos das Ilhas, considerando geograficamente o Atlântico como um “continente” mais do que como um “mar”, viram aí mais um habitat do que um meio ambiente. À pergunta; “De onde você vem, de qual país?”, eu não tinham, de modo algum, respondido: “De tal ou tal ilha”, mas sim “Do Atlântico...”.

Eu gostava dessa sensação do espaço mas, além de toda questão de origem ou de pertencimento, o que dava lugar à Casa atlântica do poeta Saint-John Perse, foi sua busca por uma poética do mundo, aquela que está enterrada “nos grandes xistos que estão por vir”.

Uma coisa é a instituição, outra coisa a peregrinação. E, para que aquela permaneça viva, é necessário sempre voltar a esta. Tão necessária quanto seja o trabalho coletivo (penso em Bacon), para que este não congele e não se fixe, mas permaneça fluido, é necessário sempre voltar à presença solitária – solitária; porém, em relação com o todo.

Para terminar, provisoriamente, nossa peregrinação múltipla de hoje, eu gostaria de citar um poeta americano que fala bem dessa solidão em relação com o tudo o que eu acabo de evocar. Trata-se de Wallace Stevens, e o poema se intitula “O lugar dos solitários”:

Que o lugar dos solidários
Seja um lugar de perpétua ondulação

Onde quer que seja: em alto mar
Sobre a sombra e verde ondulação da água
Ou nos rios –
Que não haja nenhum fim
Do movimento ou do barulho do movimento
Da renovação do barulho
E da múltipla continuação

Sobretudo, do movimento do pensamento
De sua incessante reiteração

No lugar dos solitários
Neste lugar de perpétua ondulação (
5)

Avancemos, geopoéticamente, londe das feiras e dos circos, nessas solitudes.


Kenneth WHITE

(Tradução de Jordélia Mendes Brandão)

(1) La Nouvelle Atlantide, trad. Michèle Le Dœuff e Margaret Llasera, Paris, Payot, 1983.

(2) W. H. Auden, Poésies choisies, trad. Jean Lambert, Paris, Gallimard, 1976.

(3) Trad. Trémesaygues e Pascaud, Paris, PUF.

(4) Em Manifestes du modernisme portugais, Paris, Éditions Champ Libre, 1973. Trad. José Augusto Seabra, levemente modificada pelo autor do artigo.

(5) Trad. Marie-Claude White.