Quero antes de tudo de agradecer aos organizadores deste colóquio dedicado à geopóetica, o segundo ao qual tenho a honra de ser convidado, a saber, a professora Luiza PONZIANO, o professor Georgios DIMITRIADIS e a professora Lirandina GOMES, assim como suas respectivas instituições em Portugal e no Brasil — também agradeço a Lucila MOREIRA pela tradução.

Este colóquio é uma oportunidade para me de cumprimentar a vitalidade dos grupos geopóeticos formais ou informais de língua portuguesa que nomearam, muito apropriadamente, seus encontros ‘transatlânticos’ e para saudar todos os participantes.

Como vocês provavelmente sabem, Kenneth White faleceu há quase um ano. Embora nunca tenha vindo ao Brasil, ele esteve em Portugal várias vezes, sendo a última em 2019, em Lisboa, para o colóquio "As linhas da terra: percursos geofilosóficos e geopóeticos no Antropoceno", do qual ele foi o convidado de honra.

Esta breve introdução é também uma oportunidade para saudar a tradução em curso, por Camila GOMES SANT’ANNA, do livro ‘brasileiro’ de Kenneth White: Magna Carta. Este é um evento a ser celebrado, não somente porque a primeira edição deste livro será bilíngue português/francês, mas também porque apenas 1% da obra de Kenneth White está traduzida para o português, 2-3% em espanhol e 30% em inglês. A única maneira de melhor conhecer a obra de Kenneth White e de comprentender todo o alcance da geopóetica é encorajar e até mesmo ampliar o trabalho de tradução.

Antes de começar minha palestra intitulada "A geopóetica: uma presença completa no mundo", gostaria de apresentar o plano:

 

1. Primeira abordagem

2. Às fontes da geopóetica

3. O arcaico Novo Mundo

4. Mapas e cartas

5. A complexidade do lugar

 

É possível distinguir três níveis de realidade: o Cosmos, que é a totalidade do que existe em todas as direções e dimensões do universo/multiverso; a Terra, que é a parte do Cosmos onde vivem a humanidade e todos os seres vivos; um mundo, que é a representação que os humanos fazem da Terra e do Cosmos. A mudança é constante nesses três níveis: deste que nós sabemos, o Cosmos tem uma existência de cerca de quinze bilhões de anos, mas não se exclui que conheça ciclos de criação/destruição. O planeta Terra ele também tem uma existência já antiga, mais de quatro milhões de anos durante os quais as mudanças incessantes em todas as escalas espaciais e temporais for

Quanto aos mundos, eles se sucedem ao longo da história humana. O mundo dos Neandertais provavelmente não era o mesmo dos Homo sapiens e, desde que esta última espécie se impôs, as civilizações se sucederam até a nossa época, onde o colapso generalizado ameaça devido ao domínio técnico-metafísico sobre a Natureza. O mundo em que vivemos é mortífero e moribundo. É necessário mudá-lo, mas para qual?

 

1 – PRIMEIRA ABORDAGEM

Durante décadas, Kenneth White percorreu, como nômade intelectual, as culturas do passado e do presente, com a ideia de que cada cultura oferece um ponto de vista parcial e que, ao nomadizar de uma a outra em busca do melhor de cada uma delas no relacionamento com o mundo natural, onde poderia-se desenhar os contornos de uma cultura completa em um mundo aberto.

Como escreve White em Magna Carta: "Difícil é a saída da Modernidade, sem regressão a velhos simbolismos, sem fuga para a frente". Para que haja uma cultura no sentido forte do termo, é necessário que os humanos, em todos os níveis da sociedade, compartilhem uma forte referência comum. Durante a pré-história, acrescentava ele, era a relação com o animal; durante a Idade Média cristã, a referência à Virgem. Na nossa época de globalização das trocas, de ruína técnico-capitalista que arrasta tudo para o nada, o único ponto comum possível é a relação com a Terra. Ponha os homens em contato com a Terra, diz ele, e eles terão entre si um vínculo mais forte do que se estivessem apenas em contato uns com os outros.

A continuação lógica do nomadismo intelectual é a geopóetica. Talvez não seja inútil lembrar rapidamente o que ela é e o que não é.

A geopóetica não é uma geografia literária, vagamente lírica. É um campo de convergência das artes, das ciências e da filosofia abrindo para uma refundação da relação entre os humanos e a Terra. Kenneth White e eu discutimos longamente, em entrevistas, a questão das diferenças entre a geopóetica e as outras geo-: geopolítica, geocrítica, geofilosofia, etc., no livro Panorama geopóetico (2014).

Gostaria, no entanto, de insistir um pouco mais sobre a relação entre ecologia e geopóetica, e citar para isso Kenneth White:

"Ser ecologista é se interessar pela maneira como os seres humanos e não humanos vivem em um espaço e também respeitar e querer preservar os espaços vivos. A geopóetica pretende estabelecer a relação com esse espaço. Não apenas conservá-lo, preservá-lo, mas estabelecer uma relação sensível e inteligente. Isso demanda uma mudança da pessoa, uma mudança do ser, que vai mais longe. Em seguida, é preciso tentar dizê-lo, ou seja, é preciso mudar nossa linguagem. Há duas etapas a mais." (O lugar e a palavra)

A ecologia é uma das estratigrafias da geopóetica, inegavelmente, mas a geopóetica propõe e exige mais: uma mudança na pessoa que implica em se desfazer das obsessões identitárias, num caminho verso o conceito de um ser aberto aos fluxos do mundo; uma mudança na nossa maneira de dizer nossa relação com o mundo, que sabemos está envolvida na gramática. Isso começa, notadamente, por uma frase que não coloca em destaque "nem o eu, nem a palavra, mas o mundo". Em outras palavras, uma atenção à poética da Terra.

 

2 – ÀS FONTES DA GEOPÓETICA

Concebida pelo poeta e pensador franco-escocês Kenneth White no final dos anos 1970 durante um périplo ao Labrador (A Rota Azul, 1983), a geopóetica não surgiu do acaso, mas das premissas que remontam de suas experiências anteriores.

Entre os precursores de uma visão do mundo renovado e mais rico, destacado por White em seus ensaios, sinalizamos Victor Segalen, Henry Thoreau e Alexander von Humboldt. Kenneth White considera que a Viagem às regiões equinociais do Novo Continente de Humboldt (30 vol., 1807-1834) constitui "uma peregrinação geopóetica por excelência", assim como “Cosmos”. Ensaio de uma descrição física do Mundo (4 vol., 1847-1859) é uma dessas sínteses magistrais que as mentes do século XIX podiam produzir. O que chama particularmente a atenção em Humboldt não são apenas suas contribuições, mas a direção verso (azimuth) a ciência universal. Se ele foi um iluminado de grande precisão e de envergadura, e não devemos vê-lo como um cientista austero, mas sobretudo como um "amante fervoroso" (Baudelaire) do mundo.

Se ele percorreu durante cinco anos, muitas vezes em condições materiais mais do que difíceis, a Nova Granada e o Peru, a Nova Espanha, de Cumaná a San Carlos, de Cartagena a Quito, de Lima a Veracruz, é porque ele estava profundamente feliz. Veja o que ele escreveu ao chegar em Cumaná: "Estamos aqui, finalmente, no país mais divino e maravilhoso. Plantas extraordinárias, enguias elétricas, tigres, tatus, macacos, papagaios e muitos, numerosos índios puros, quase selvagens, uma raça de homens muito bonita e muito interessante. Desde nossa chegada, corremos como loucos... sinto que serei feliz aqui."

Em Humboldt, o saber está ligado ao ser, o ser está ligado ao ambiente e, graças a uma preocupação estética, sentimos que o espírito pode se projetar longe — lá onde uma visão do mundo, rica e habitável, um cosmos, se elabora: "um conjunto de relações, escreve ele, que é mais fácil de compreender quando se está no local do que definir com precisão". Poder-se-ia dizer que Humboldt passa por uma gaia scienza para se aproximar da geopóetica.

Mas é a Kenneth White que cabe ter fundado esta teoria-prática.

Foi em 1994 que ele dedicou um primeiro ensaio exclusivamente à geopóetica. O Platô do Albatroz – Introdução à geopóetica, cujo nome é emprestado deste platô que mal emerge da água a mil milhas náuticas das Galápagos — "qual melhor símbolo para um pensamento (o da geopóetica) em emergência? O Platô do Albatroz não é um manual de geopóetica: "A ênfase, aqui, não está na definição, mas no desejo, um desejo de vida e de mundo, e no entusiasmo." Não se trata de fundar um movimento literário, notadamente porque o "poético" deve ser entendido no sentido de "formação e dinâmicas fundamentais" suscetíveis de se manifestar tanto nas ciências quanto nas artes ou na linguagem — e não no sentido de "relação à poesia". Não se trata igualmente de fundar um sistema; ao contrário, permanece-se no aberto e na recusa ao dogmatismo, pois a teoria geopoética é inseparável de sua prática, é "uma ideia básica que não se deixa definir in abstrato, mas que se desenha ao vivo, a partir de vários contextos".

O projeto geopoético deve constituir, na história do espírito, uma nova ferramenta ou instrumento para compreender e expressar nossa relação com o mundo. Ele sucederá assim ao Organon de Aristóteles (da época clássica), ao Novum Organum de Bacon (da modernidade) e será um organum para hoje e para amanhã: Organum Geopoeticum.

No Panorama Geopoético, White esclarece:

"O espaço de Aristóteles era o Mediterrâneo. O de Bacon já era um mar mais agitado, que se estendia além das Colunas de Hércules: o Atlântico ("o local menos fechado", disse Saint-John Perse), e, além, o Oceano mundial. Abertura total, com muitos riscos, muitas catástrofes no horizonte. Como diz Melville, em Moby Dick: 'Todo pensamento profundo vem do esforço intrépido da alma para manter a independência em um mar aberto.' (pp. 99-100)

Dedicar-se na geopoética é abrir-se, intelectual e sensivelmente, à poética que opera na natureza, à poética natural espontânea. A metodologia do nomadismo intelectual ("norte, sul, leste, oeste — mundo antigo e mundo moderno") e o objetivo da geopoética são o estudo das complexas relações entre o eu, a palavra e o mundo, a busca por uma nova expressividade, uma poética da Terra. Para isso, "a abordagem geopoética explora o caminho arcaico e a voz anárquica, antes de se engajar em outros caminhos sem nome."

 

3 - O NOVO MUNDO ARCAICO

A prática da deriva, do nomadismo e do errático é fundadora da geopoética, mas obviamente não se reduz a isso. A grande peregrinação americana começa bem antes dos pais peregrinos do Mayflower. Porque "os mundos em gestação e desenvolvimento tem a tendência de se cristalizar em impérios", White segue na história do Novo Mundo os rastros dos povos errantes. A questão do "Novo Mundo" é liberada de seus limites vespucianos para ser restituída à sua busca indefinida. Ao bem dizer que os conhecimentos relativos ao povoamento do continente americano estão em constante evolução.

Por muito tempo, o povoamento original das Américas foi concebido como uma grande migração de asiáticos que passaram pelo estreito de Bering durante o Paleolítico, graças a um corredor livre de gelo há 13.000 anos. Essa era a posição inamovível dos pré-historiadores norte-americanos. Mas as descobertas que se acumulam nas últimas décadas nos Estados Unidos, no Chile e no Brasil, tendendo a provar que a presença humana nas Américas não somente é muito mais antiga do que a teoria do estreito de Bering, mas que o povoamento teria ocorrido em várias épocas e por diferentes rotas.

Para resumir, o povoamento mais antigo, segundo a audaciosa teoria da pré-historiadora e antropóloga franco-brasileira Niède Guidon, teria ocorrido a partir da África Ocidental em direção à costa nordeste do Brasil há cerca de 100.000 anos AP. Descobertas no Brasil, como em Pedra Furada ou Pedra Pintada (estudadas, entre outros, por um dos meus antigos professores em paleontologia, Claude Guérin) mostraram que o povoamento ali é comprovado entre 11.000 anos AP e 38.000 anos AP. Hipóteses complementares sustentam com plausibilidade uma migração desde o norte da Ásia ao longo das costas ocidentais das Américas, a teoria da rota das florestas de kelp (algas costeiras), há 16.000 anos, quando o escudo de gelo ainda impedia ainda o trânsito pelo Alasca e Canadá. Existe também uma teoria que afirma que o povoamento da América do Sul teria ocorrido a partir do Sondalândia (a província das ilhas de Sonda no Sudeste Asiático) passando pelo Pacífico Sul há 50.000 anos. Os diferentes clãs teriam espalhado-se por todo o continente americano.

Por que valorizar tanto essas derivações? Porque "viagem e visão andam juntas, uma não é possível sem a outra". Assim como os fundadores de cidades, estados e impérios, ao se tornarem sedentários, são capazes de impor sua visão humana da existência aos humanos, da mesma forma os nômades em desejo-de-mundo têm consciência da ilusão da maioria dos objetivos humanos. Eles permanecem em contato com o mundo e não fundam sua cultura, como fizeram os gregos a partir de suas cidades, em uma desmesura que é apenas um buraco negro.

Passando dessas considerações antropológicas e arcaicas para considerações contemporâneas e individuais — é isso que o nomadismo intelectual permite fazer.

 

4 – CARTAS E CARTOGRAFIAS

Em 2020, Kenneth e eu acalentamos a ideia de ir juntos à América do Sul, notadamente ao Brasil e ao Chile, onde a geopoética suscita um interesse marcante. Isso não foi possível. Kenneth visitou muito o arco caribenho e eu, por minha vez, visitei um país vizinho do Brasil: a Venezuela. Das minhas viagens de ambos os lados do Atlântico, tirei um poema muito longo (de mais de 100 páginas) intitulado Gondawana.

Embora Kenneth não tenha pisado o solo sul-americano, ele leu muitos relatos de exploradores (Humboldt, Jean de Léry, Claude D’Abbeville, marcadamente) e avaliou mapas antigos. Deriva daí o livro Magna Carta, ilustrado por Dominique Rousseau.

Embora eu não coloque esses dois livros no mesmo plano, permita-me de falar rapidamente do meu, do qual Kenneth disse que estava "em pleno na geopoética", considerando que era "enorme".

Vejam como o poema é apresentado:

"Na hora em que o destino coletivo dos seres vivos está ameaçado, este longo poema evoca a epopeia da espécie humana desde suas origens até nossos dias atuais em sua relação sempre estreita com os lugares marinhos e terrestres, com os seres vivos que os habitaram e ainda os habitam.

A exploração física e mental contemporânea de várias regiões da antiga província geológica do Gondwana — com esse -a da origem e dos novos começos que aparece no coração de Gondawana — dá a esses versos a força de uma experiência intensamente vivida em contato com os elementos, o mundo natural e os povos, na procura da ordem anarco-arcaica mais rica para abrir e fundar um mundo." (Gondawana)

A escrita segue a via dupla do nomadismo intelectual e da geopoética. A saber, aquela que repousa sobre a integração (a mais eficaz e discreta possível) de elementos de saberes naturalistas (geologia, paleogeografia, botânica, zoologia, astronomia) e humanos (etnografia, história, filosofia, linguística) que tratam de ser colocar em ressonância para obter uma palavra plena sobre esses lugares.

O caso de Magna Carta é bastante diferente, mas ilustra a dupla exploração da obra no binômio "nomadismo intelectual-geopoética". Contrariamente ao Gondawana, a exploração sensorial-física e a exploração mental-abstrata não são realizadas pela mesma pessoa, mas por duas: Kenneth White para o texto geopoético e Dominique Rousseau para o material visual geopoético, o conjunto sendo organizado pelo poeta. Assim, as longas estadas de Dominique Rousseau no Brasil permitiram-lhe assumir o papel de coletor de linhas do mundo, suas discussões com Kenneth White e seus papéis criados para ele, permitindo a este último entrar em um diálogo estético com as terras do Brasil. White assim especifica em Magna Carta a diferença entre percepção e sensação: a primeira captando as formas da matéria-mundo, a segunda, suas forças, ambas conjugadas visando a criar uma versão do mundo que constitui em si um mundo. Com este livro escrito sobre o Brasil para o Brasil com uma repartição inédita das tarefas, Kenneth White mostra de forma original como a questão do lugar pode ser abordada na geopoética.

 

5 – A COMPLEXIDADE DO LUGAR

Em seu tratado intitulado A Física, Aristóteles já assinalava que o lugar é algo complexo, que existe um lugar do lugar e que o lugar tem vibração. Para nos atermos aos fundamentos da geopoética, digamos primeiramente que nenhum lugar é isolado. Com alguns conhecimentos de geologia, é possível religar o presente ao passado mais distante e o aqui ao lá, uma leitura da paisagem permitindo compreender as forças que a moldaram. Da mesma forma, com conhecimentos sobre os animais, podemos seguir as migrações dos pássaros e dos insetos que nos introduzem aos fluxos e aos equilíbrios do ser vivo. Enfim, se assim podemos dizer, a observação das chuvas e dos cursos d'água, das brumas e das correntes marinhas, ou a atenção aos ventos, tornam não apenas inteligíveis, mas sensíveis, as relações no tempo e no espaço entre os elementos, o mineral, o vegetal e o animal, cujas fronteiras às vezes são tão desfocadas.

O problema que nós, humanos, encontramos em nossa leitura do real, é que "nossas representações não correspondem à totalidade complexa do real, que nossas estruturas mentais (erigidas em religiões, ideologias, filosofias) bloqueiam uma presença integral no mundo" (Magna Carta). Assim, um lugar é muito mais do que um conjunto de coordenadas físicas, históricas e climáticas. Um lugar é não apenas isso, mas também o jogo que as forças e formas que o percorrem incessantemente lhe fazem tomar, mesmo que brevemente, mesmo em uma escala pequena. O lugar é constituído por um conjunto do que poderíamos chamar de 'dimensões da existência' abertas umas sobre as outras. Para reconhecer essas múltiplas dimensões da existência, é necessário primeiro conhecê-las, ou seja, sentir sua realidade em um corpo e em um espírito.

Adoraria de finalizar, sem concluir, citando estes versos da última coletânea de Kenneth White, Memorial da Terra-Oceano, que dizem com toda simplicidade para o que a geopoética nos abre:

 

"Chegar a um lugar

onde não há

nem complicações

nem explicações

avançamos passo a passo

nos atendo inteiramente a

o que está ali."

 

Agradeço pela vossa atenção.

Régis POULET

(Bahia, 18 de julho de 2024)

(Tradução Marise Campos de Souza)