Preâmbulo

De uma forma geral, a literatura do nosso tempo deixa, por assim dizer, muito a desejar. Ela apresenta um espetáculo pot-pourri confuso, em parte trivial e em parte inexprimível. As livrarias acumulam tudo em suas prateleiras, pelo menos por um tempo – as bibliotecas fazem o mesmo, de forma mais permanente. Para se livrar da fama de nostalgia empoeirada e para se sentir “conectado” com o presente, as secções literárias das universidades propõem qualquer coisa (segundo métodos psicanalíticos, semióticos, etc. – ostentando seu cientificismo). Quanto ao conteúdo dessas produções, que descrevi como “confusas”, “triviais” e “inexprimíveis”, trata-se de uma espécie de mistura psicossociológica e sentimental, que conscienciosamente endossamos acrescentando, dependendo de cada caso, várias doses de cor local, convencendo-se assim de que um trabalho cultural está a ser realizado.

Diante dessa situação, tomo da secção “teoria literária” de minha biblioteca, os livros de dois autores que fizeram propostas, cada um a seu modo, de publicação: Literatura e Revolução, de Leon Trotsky e Espaço literário, de Maurice Blanchot.

Trotsky fala em nome de um “novo princípio histórico”, o socialismo: “A Revolução derrubou a burguesia e aquele acontecimento decisivo irrompeu na literatura. A literatura que surgiu em torno de um eixo burguês desapareceu. Tudo o que permaneceu mais ou menos aceitável no domínio da cultura, e isso é particularmente verdadeiro na literatura, foi e continua a ser tentado para encontrar uma nova orientação. Como a burguesia não existe mais, o eixo não pode ser outro senão o povo sem a burguesia. Mas o que é a cidade? Em primeiro lugar, os camponeses e, em certa medida, os pequenos burgueses das cidades, depois os trabalhadores que não podem ser separados do protoplasma popular do campesinato. Isso é o que expressa a tendência fundamental de todos os ‘companheiros de viagem’ da Revolução.”

Por muito tempo senti certa afinidade com essa “comunhão”, teoricamente mais livre, de passos e caminhos (“total liberdade de autodeterminação no domínio da arte”), do que a burocracia literária do realismo socialista instalada por Stalin. Mas o caminho dos companheiros de viagem rapidamente chegou ao fim. Além dos burocratas, logo restaram apenas os místicos, os de Deus e os do Vazio.

No limiar do “espaço literário” de Blanchot, um espaço caracterizado pela “solidão essencial”, está Malarmé, e ao lado dele Kafka, com um certo Rilke e um certo Hölderlin. Certamente este “espaço literário” existe fora do volume da literatura, o que lhe confere uma qualidade, mas a sua existência é cada vez mais exangue e os temas cada vez mais obsessivos são os da ausência, do infortúnio e da morte: “Infelizmente, enquanto aprofundava o verso nesse ponto, encontrei dois abismos que me deixaram desesperado”, disse Mallarmé. Aqui a autonomia beira o autismo: “A escrita só começa quando a escrita é a aproximação daquele espaço em que nada se manifesta, ali onde no seio da dissimulação a fala não é senão a sombra da palavra, linguagem imaginária e linguagem do imaginário, aquele de que ninguém fala, o murmúrio do incessante e do infinito...” O “espaço literário”, como o concebe Blanchot, pode muito bem constituir um momento específico de uma viagem, não é um mensageiro de energias, nem é o modelador de mundo.

Em seguida, tentarei sugerir outro caminho.

1. Sair da literatura

No contexto francês, o desejo de sair da literatura (aquele “dilúvio sem pomba”, dizia Raymond Schwab) é sentido desde o final do século XIX. Obviamente, pensamos antes de tudo na famosa frase de Verlaine: “E tudo o mais é literatura”.

Extraindo esta frase do uso banal, da sua redução a um cliché sem sentido, cito o seu contexto:
Primeiro de tudo a música
E a sílaba ímpar favorece
Mais grave e mais solúvel no ar,
Sem nada que pese ou levante.
 
Tens de ser habilidoso
Na tua escolha de palavras:
Nada mais bonito que a canção cinza
Onde o indeciso encontra o preciso.
 
Esses belos olhos velados,
É a luz bruxuleante do meio-dia
É, por um céu quente de outono
A bagunça azul de estrelas brilhantes!
 [...]
Que seu verso seja a boa nova
Espalhados pelo vento da manhã
Onde aroma de menta e tomilho
E tudo mais é literatura

A Arte Poética de Verlaine situa-se em modo menor, e sob o signo do humor – ele rima, a todo o custo, um poema contra a rima. Mas vale a pena examinar este poema de perto. Observa-se a rejeição de toda a retórica pesada (“tudo o que pesa e eleva”), mas sem renunciar à gravidade. Sem exageros, poderíamos dizer que, fundada no estranho, a linguagem se abre ao cosmos. (Numero Deus impare gaudet, diz Virgílio nas Éclogas) – não um monumento de bronze, mas um movimento que une a imensidão: “A boa aventura espalhada pelo vento da manhã”. Recordaremos também o conceito de uma expressão situada algures entre o preciso e o indeciso, reunindo os dois: “A desordem azul das estrelas brilhantes”.

Sem dúvida, perto de Verlaine está Rimbaud, muito mais enérgico que seu cúmplice de uma época, e muito mais direto e até brutal: “Muitos escritores, poucos autores”, diz ele sem rodeios. Residente, por um curto período, numa cidade que ele gentilmente apelida de “Parmerde”, ele expressa numa carta a sua aversão por misturas literárias, declarando que prefere muito mais “os rios das Ardenas”. Ele mesmo, depois de escrever o relatório ardente, a carta estridente da sua “temporada no inferno”, tentaria o que poderíamos chamar talvez de uma “iluminação”, antes de rejeitar a arte como “absurdo” e partir para os planaltos desérticos da Abissínia para submergir num silêncio árido onde o comércio convive com a ascese.

O surrealismo assume o lugar de Rimbaud. É em abril de 1919, no Hôtel des Grands Hommes, na Place du Panthéon em Paris, que André Breton e Philippe Soupault iniciam as primeiras experiências de escrita automática, o “ditado do inconsciente”.

No manuscrito que Breton escreve, ao ler Louis Aragon, ele especifica que essas páginas não devem ser consideradas como “literatura”. Com efeito, não se trata de “literatura”, trata-se de campos magnéticos: “Estamo-nos aproximando do final da Quaresma. O nosso esqueleto torna-se transparente como uma árvore através das sucessivas auroras da carne...” Aragón viria a escrever anos mais tarde (maio de 1968, em Les Lettres françaises) que era “o monumento no alvorecer deste século em torno do qual toda a história da escrita gira em torno, e não do livro pelo qual Stéphane Mallarmé queria que o mundo acabasse, mas daquele pelo qual tudo começa”. As primeiras páginas de Campos Magnéticos apareceram no número 8 da revista Literatura, batizada de brincadeira. Nos n° 11-12 da segunda série desta revista, sob o título “Erutarettil” (“littérature” ao contrário), encontramos uma lista de autores de todos os países e de todos os tempos considerados os precursores do surrealismo: Hermes Trimesgistro, Swedenborg, Lautréamont... Nenhum deles é um “alfabetizado” no sentido convencional da palavra.

O campo (Limpeza da Terra, Margem total) está aberto:

O viajante que atravessou Les Halles no final do verão
Caminhava na ponta dos meus pés
O desespero girou seus grandes e belos arcos no céu
Na carteira estava meu sonho aquela garrafa de sais
Que só a madrinha de Deus inalou
O torpor espalhou-se como a névoa
Em Au Chien qui fume
Onde os prós e contras acabaram de entrar
A jovem só podia ser mal vista e com o canto do olho.
Eu lidei com o embaixador do salitre
Ou com a curva branca sobre um fundo preto que chamamos de pensamento...

 

2. Da literatura à escrita

Em algum lugar, com humor e não sem concessões, Oscar Wilde evoca o trabalho do escritor: inserir uma vírgula em uma frase pela manhã e retirá-la à tarde, depois de muita reflexão e com um sentimento de angústia. Pelo contrário, sem descurar o papel das vírgulas, pelo contrário, no caso da escrita, há que ter sempre presente a ideia de que a sua finalidade originária é situar-nos num espaço, que não é apenas um espaço literário.

Eu diria que começamos a escrever (poeticamente) quando não conseguimos registar em lugar algum – quando os espaços de registo se tornaram irrespiráveis, inabitáveis. Diria também que a escrita geopoética é, antes de tudo, uma tentativa de se situar num espaço, o mais amplo possível. É a maneira de abrir um mundo.

Mas antes de irradiar é preciso radicalizar.

O Grau Zero da Escrita de Roland Barthes (1953) é “uma reflexão livre sobre a condição histórica da linguagem literária”. Barthes fala de um certo impasse da literatura “sempre condenada a interpretar-se através de uma escrita que não pode ser livre”.

Esta literatura, esta escrita, remonta ao século XVII. É a escrita clássica – primeiro a da Corte, depois a da burguesia. O que a distingue, no fundo, é a “mitologia essencialista do homem”. Caracterizado pelo passado narrativo, que, segundo Barthes “faz parte de um sistema de segurança das Belles Lettres”, suporte de um mundo construído, desenvolvido, “isento do estremecimento da existência”, o romance é o resultado final. A revolução proletária, não tendo sido suficientemente radical, não mudou nada: os revolucionários “não pensaram em questionar a natureza humana, muito menos a sua linguagem”. No máximo, acrescentaram à mitologia essencial uma mudança de cenário, elementos de cor local, uma dose de miséria psicossocial. “Talvez haja nessa sábia escrita dos revolucionários, a sensação de impotência para criar uma escrita livre naquele exato momento.” E podemos seguir a ladeira fatal para o mercado dos romances comerciais que se limitam a preparar refeições insípidas com sobras: a mesma mitologia, realismo social em várias doses, um pouco de psicologia banal e a mesma escrita clássica. Mais ou menos distorcido e, claro, mais ou menos competente.

Foi apenas em meados do século XIX, pelo menos em França (noutras paragens, aconteceu como se nada tivesse acontecido) que algo se quebrou neste contexto: o escritor deixa, aqui e ali, de ser “testemunha universal” de tornar-se em “uma consciência infeliz”. Se a arte clássica era “uma circulação sem restos”, como a de um rio artificial, de um canal, a partir desse momento acumulam-se depósitos. Vemos isso, por exemplo, no narcisismo de Chateaubriand, no tecnicismo de Flaubert, no nada de Mallarmé: o predomínio do eu-criador, uma problemática da linguagem ou a ausência total do mundo, um idealismo absoluto, a abolição de toda a materialidade, a criação de “bugigangas de sadia inanidade”. Essas três “posições” também terão seus filhos: desta vez não no romance comercial, mas nas contorções psicomentais do “génio” pessoal, na obsessão pela linguagem (não é mais o Grand Style, o cliché decorativo, a monumental metáfora, mas logorreia sem fim) e a poesia como um “encantamento” vazio, uma máquina de inanidade que gira eternamente em torno de si mesma.

A única “saída” para essa situação, essas posições e o último avatar de todo esse desenvolvimento, o “grau zero da escrita”, ou seja, “escrita neutra” ou “escrita branca”: a de Camus em O Estrangeiro. Assistimos a uma tentativa de “chegar a um objecto absolutamente desprovido de História”, “de encontrar a frescura de um novo estado de linguagem”. Mas estamos apenas às portas da “Terra Prometida”, ou seja, “às portas de um mundo sem literatura”.

Chegado a esse estágio, o próprio Barthes inventou a semiologia, ou seja, a ciência geral dos signos, dos significados, baseada na linguística estrutural. Se, nas mãos de epígonos científicos, a semiologia poderia rapidamente degenerar em algo diferente do estudo semiótico-linguístico de qualquer literatura (com certeza um estudo mais inteligente e mais interessante que a própria literatura, mas muito limitado), nas mãos de um clarividente praticante, como estudo de todos os signos espalhados pelo universo, ela representa uma liberdade, uma abertura imensa. Mas quem diz “sinal” fica indubitavelmente ligado, por mais abstrato que seja, às mitologias estabelecidas, aos contextos psicomentais constituídos. E resta a questão de uma poética, de uma linguagem que implique todos esses signos, pelo menos os mais significativos de entre eles.

Ao invés de apenas estudar literatura, um determinado contexto literário, seria possível estender o próprio conceito de literatura, abrir um outro contexto?

Encontramos elementos de resposta no próprio Barthes.

Referindo-se à literatura, à escrita pré-clássica do século XVI, por exemplo, fala “dos homens comprometidos com um conhecimento da natureza e não com uma expressão da essência humana”, e de um “processo de investigação aplicado a todo o mundo". Em outro lugar, e em seu nome, ele fala da “imensa frescura do mundo de hoje” e da “primeira frescura do discurso”. Se nos lembrarmos também de outros “signos”, outras frases que pontuam o seu texto, como “geologia existencial”, temos pelo menos uma aproximação do que chamo de geopoética.


3. Primeiros esboços da escrita geopoética

Consideremos (reconsideremos) alguns exemplos do que acaba de ser abordado em alguns autores dos últimos dois séculos no Ocidente.

O que é mal chamado de “romantismo” nos livros didáticos abre um campo imenso, bastante confuso, mas com ideias muito reveladoras, encontradas com mais frequência em cadernos do que em obras acabadas. É assim que, em Novalis, excluo Os Hinos à Noite, para me interessar por sua evocação da “escrita enigmática” da Natureza: “Os homens seguem caminhos diferentes. Quem os seguir verá figuras estranhas aparecerem. Figuras que parecem pertencer à grande escrita enigmática que encontramos por toda a parte: nas asas dos pássaros, nas nuvens, nos cristais...” Também me intrigava a intuição de um género de livro que não era o romance, inclusivé romântico, mas outra coisa: “A arte de escrever livros ainda não foi inventada, mas está para ser.”

Com suas “folhas de erva” que remontam ao início, Walt Whitman também procurava outro tipo de livro. Declarou-se disposto a abrir mão de tudo o que normalmente se entende como poesia (emoção, paixão, sentimento, expresso através de uma prosódia cuidadosa...) se ao menos pudesse fazer “a ondulação de uma onda, o sopro do oceano”. Se grande parte da sua obra é marcada por um hegelianismo (Weltgeist, destino nacional) traduzido para o ianque, à sua escrita caótico-democrática que acumula informações à esquerda e à direita e intuições que visam adentrar um espaço, vamos chamá-la de protogeopoética. Seu programa foi melhor formulado por um poema escrito em 1881 durante uma visita a Platte Canyon, Colorado:

Espírito que moldou esta paisagem
Este caos de rochas ásperas e vermelhas
Esses picos ousados ​​que alcançam o céu
Esses desfiladeiros, esses riachos turbulentos e límpidos, esse frescor nu
Esses arranjos confusos e caóticos, feitos sem nenhuma ordem além de sua
Eu conheço você, espírito selvagem – nós estivemos em contacto
Eu também, faço arranjos assim, sem motivo a não ser deles.
Eles não censuraram minhas canções por falta de arte?
Não respeitar as regras precisas e delicadas?
A medida da letra, a graça alcançada do templo, a estética polida do arco e coluna
Mas você que se alegra aqui – espírito que criou esta paisagem
Eles não se esqueceram de você.
 
Aqui, o Weltgeist (O Espírito do Mundo) de Hegel tornou-se geológico.

Muito perto de Whitman, mas na escuridão dos bosques e não no bulício das avenidas, está Henry Thoreau, cujos Diário constitui, apesar de um grande número de contradições, um enorme projeto geopoético. Thoreau quer escrever a “história natural” de um novo ponto de vista, de uma nova perspetiva, considerando, não uma “poética naturalista” (uma poética cujos traços se encontram, por exemplo, em John Muir), mas, mais radicalmente, uma escrita-natureza. Para fazer isso, ele tenta não apenas livrar-se de todo o reportório da retórica, mas voltar abaixo da moral, abaixo do simbólico, abaixo de qualquer questão metafísica: “A natureza não faz perguntas e não responde a perguntas” que o homem lhe pode perguntar. Thoreau quer viver “o mais longe possível” e escrever como o vento viaja e como a erva cresce.

No início do século XX, mais precisamente em 1908, Ezra Pound herdou os cadernos de Ernest Fenollosa, cadernos cheios de anotações sobre pintura, literatura, os idiomas chinês e japonês. Pound publica essas notas e as publica sob o título The Character of Chinese Writing as a Poetic Medium (O Carácter da Escrita Chinesa como um Meio Poético). Para Fenollosa, o sistema intelectual ocidental era “uma construção de tijolos”, fundada numa lógica classificatória (daí a lentidão em aceitar a noção de evolução). Nesse sistema, não só a mente “deixava de pensar metade do que queria pensar”, como “a natureza parecia cada vez menos um paraíso e cada vez mais uma fábrica”. Para resolver o bloqueio, para flexibilizar a lógica habitual, Fenollosa propôs, antes de tudo, um estágio de escrita ideográfica e depois uma nova revisão das línguas ocidentais. Se nas línguas fonéticas ocidentais as raízes das palavras estão escondidas, na escrita chinesa elas são evidentes: por exemplo, o conceito “Oriente” é escrito com dois ideogramas combinados: “sol” e “árvore”. Encontramo-nos situados no universo e ao mesmo tempo que a ideia desperta na mente os sentidos são abalados pela imagem: a inteligência é sensível e está alerta. Obviamente, é a etimologia que torna isso possível nas línguas ocidentais. Por exemplo, de acordo com Fenollosa, o verbo inglês be (“ser”) vem da raiz bhu, que significa “crescer”. Isso renova consideravelmente essa noção de “ser” que deu origem a tantas construções filosóficas no Ocidente, e a devolve, por assim dizer, à Terra e ao movimento. Tratar-se-á de subir o caminho linguístico, de entrar num campo da vida, praticando “uma estenografia nítida e pictórica das operações da natureza”. É assim que a arte dará o que pode dar: uma sensação repentina de libertação, uma sensação repentina de crescimento.

Na tentativa ideográfica de alcançar os primeiros elementos, rumo a um movimento inicial, correspondentes aos ensaios de Nietzsche, ele começa por analisar, camada por camada, a cultura acumulada ao longo dos séculos, para se fixar em terreno sólido. Este é particularmente o caso do planalto de Engadin, seis mil pés acima do tempo e da humanidade, onde o ar é fresco, onde abundam as correntes rápidas, onde o espírito conhece uma transparência estimulante. Deixando para trás toda a literatura natimorta e sem inspiração, Nietzsche concebe livros cheios de pensamento latejante e escrita sobressaltada, salpicados aqui e ali com páginas que, como resultado de orgias mentais, se espalhariam como campos de cevada sob o sol. “Irmãos, permaneçam fiéis à terra!”

Barthes havia celebrado a agrafia absoluta de Rimbaud. Era para ignorar que Rimbaud havia passado da agrafia para a geografia. Com efeito, aqueles que procuraram “o lugar e a fórmula” sem os encontrar e abandonaram a “arte”, acabaram por escrever textos no planalto da Abissínia, no deserto de Harar: “Ogaden, região central do país, cuja elevação média é de 900 metros, seria, segundo informação de Sottiro, uma vasta região de estepes: após as chuvas ligeiras que caem sobre o terreno, encontramos um mar de capim alto, interrompido nalguns locais por campos de seixos.”

Mais próxima da escrita ideográfica propriamente dita do que Nietzsche, que ele descreve como “símbolos nus flexíveis adaptados à forma das coisas” e da qual dirá, seguindo de vigília em vigília, as pegadas da Terra Amarela, que despojam “as formas da inteligência humana em movimento, convertidas no pensamento da pedra de onde provém o grão”, Victor Segalen, desgustoso com a “compaixão literária” com que a nossa sociedade se satisfaz, aproxima-se do planalto tibetano, tendo em vista uma prosódia “que vai nascer do próprio país”.

Assim vemos que o que chamo de “escrita geopoética” já existe há algum tempo, aqui e ali, pelo menos de forma embrionária, muitas vezes misturada com outras formas, estilos e conceções.

É chegado o momento de tentar, reunindo estas forças dispersas, avançar mais neste terreno, neste território.

 

4. O campo do grande trabalho

Em dois ensaios, Vocabulário estético (1946) e Babel (1948), Roger Caillois se opõe ao que considera “um desprezo pela literatura por parte dos literatos”, vendo apenas perversão naquilo que alguns chamam de revolução e, por outro lado, apenas orgulho, impostura e confusão.

Em suma, há algo de podre no estado da literatura, na “república das letras”, inclusive naqueles que querem “alcançá-la”.

É preocupante assistir a mais um “debate intelectual”, a mais uma polémica interliterária, mas Caillois observa as coisas de mais longe, de cima. A crítica é acompanhada de análise e a análise é acompanhada de princípios e proposições.

Ele começa defendendo o uso responsável da palavra e defendendo o “ofício da escrita”. Contra a expressão da “vida”, o impulso dos “instintos”, a imersão no inconsciente, Caillois vale-se da clareza, da inteligência, da razão, da lucidez, da coerência, da disciplina, até da retórica, do artifício, da convenção. “Admitirei sem rodeios – diz ele – em geral, não tenho gosto a não ser edificar ou melhor forjar literatura, a fim de manter a importância arquitetónica do epíteto. É o único que parece ter alcançado grandeza estável. O resto ainda é entretenimento; não fazemos nada além de nos entreter. E então volta a este ponto: “Às vezes digo que sou a favor de uma literatura edificante. Corro o risco de muitos imaginarem que falo como moralista: falo como pedreiro”.

Para prolongar a metáfora, o pedreiro leva suas pedras para um edifício, ou seja, para uma organização humana e social, “um esforço geral de civilização”. Quando a literatura perde esse contacto com um contexto mais amplo (caracterizado, em momentos de intensa cultura, por “uma certa unidade de inspiração”), quando se autonomiza, instala-se a decadência: não se faz mais a distinção entre literatura edificante e literatura recreativa, e isso irá progressivamente invadir todo o espaço. Entregue a si mesma, a literatura terá como lugar o vazio, universos fechados em si mesma; sem dados generalizáveis, a obra cederá à simples expressão da pessoa, esta será reduzida a ser apenas uma “alma triste e vingativa”.

Refletindo alguns anos depois, Caillois reconheceu abertamente que essas observações podem ser excessivamente rigorosas e até injustas. Ele não ignorava o tipo de ortodoxia formal e mesmo de arregimentação institucionalizada que, em mentes menos inteligentes e menos abertas que a dele, eles podiam realizar. Mas eles representam problemas reais, em geral.

Caillois começara a enfrentar esses problemas por volta de 1937, quando deixou o grupo surrealista para seguir os cursos de Marcel Mauss e Georges Dumézil na Escola Prática de Altos Estudos e, sobretudo, para fundar, com Georges Bataille e Michel Leiris, o Colégio de Sociologia. 

No seu estudo, Les Civilisations: éléments et formes (As Civilizações elementos e Formas), Mauss fez a distinção, por um lado, entre “uma história política simplista e ingênua” e, por outro, a tendência para “uma história mais forte, mais geral e mais racional”. E em seu “Fragmento de um plano de sociologia geral descritiva” (1936), pedia uma “sociologia geral intensiva e exaustiva”, defendia uma “sociologia geral intensiva e exaustiva”. Entretanto, Dumézil, através do estudo das línguas e dos mitos, desbravava todo o espaço indo-europeu e, sobretudo, na companhia dos seus amigos do Cáucaso e da Anatólia, todo o território situado a noroeste da civilização grega, todo o interior celta-escita do Mar Negro e do Mar Cáspio (terras de passagem) onde encontrou, entre outras coisas, paralelos surpreendentes entre a epopeia dos celtas e a dos ossetas.

“Durante os últimos vinte anos”, escreve Caillois em seu Programa para o Colégio de Sociologia (1937), eles viram [...] um dos maiores tumultos intelectuais imagináveis. Nada duradouro, nada sólido, nada que funda: tudo desmorona e perde suas arestas. Aquilo que o seu co-fundador, Georges Bataille, iria fazer eco ao escrever alguns anos depois na Crítica (n° 1, junho de 1946) que o Colégio tinha sido fundado por pessoas que “sentiam que a sociedade tinha perdido o segredo da sua coesão”.

A ênfase é colocada no ato de fundar, nas noções de fundação e fundamento Caillois continua: “Segue-se que também seria apropriado desenvolver [...] uma comunidade moral [...]. O objeto preciso da atividade prevista pode receber o nome de sociologia sagrada, na medida em que implica o estudo da existência social em todas aquelas manifestações onde emerge a presença ativa do sagrado.

A primeira noção fundacional, o primeiro elemento de coesão social que surge na mente desses sociólogos ativos é, portanto, o sagrado.

Caillois desenvolve sua conceção do sagrado em seu livro de 1939 O Homem e o Sagrado.

Com o fim de “devolver à sociedade uma atualidade sagrada, indiscutível e convincente”, segundo Caillois, convinha estudar antes de tudo “as fontes mais profundas da existência coletiva” e os meios utilizados pelas sociedades para estabelecer uma “receita” universal” que permitiria o compartilhamento de dinâmicas e estáticas e, ao mesmo tempo, evitaria a agitação (dinâmica derivada) e a estagnação (estática inerte) na sociedade. Por muito tempo, isso foi, sem dúvida, o sagrado. Caillois distingue dois tipos de sagrado: a coesão sagrada (representada pelos totens) e a dissolução sagrada (representada pelos deuses).

Era assim que as sociedades primitivas viviam e ainda vivem aqui e ali.

Mas e a sociedade mais complexa de hoje? Essa é a pergunta. Nesta sociedade, que desliza para uma uniformidade maciça, o sagrado, quando existe, desmorona-se, refugia-se na interioridade da alma, já não se manifesta publicamente, mas em formas mais ou menos caricaturais.

O que fazer, neste contexto?

Georges Bataille mergulhou na “experiência interior”, praticando à sua maneira, na sua vida privada, o gasto e a dissolução.

Michel Leiris ia dedicar-se, por um lado, a uma lúcida etnologia e, por outro, a uma tauromaquia literária.

A evolução de Caillois parece-me mais complexa e mais interessante.

Em primeiro lugar, fica fora, isto é, fora das disciplinas definidas e fora dos interiores um tanto confinados e “roxos” de Bataille.

Em seu ensaio inaugural para o Colégio de Sociologia, “The Winter Wind”, ele anuncia que “uma estação ruim, talvez uma era quaternária – o avanço dos glaciares – começa para esta sociedade desmantelada, quase arruinada”. O sedentário, continua ele, estremece e se cala – mas o nómada está do lado de fora.

Em outro texto, “La platine” (epílogo de seus ensaios críticos sobre “as imposturas da poesia”), ele evoca um “vasto campo aberto para o desdobramento de uma energia”.

É aqui que, saindo do sagrado, começamo-nos a aproximar do geopoético.

É no “vasto campo” evocado por Caillois que se pode realizar uma obra – uma obra poética de grande envergadura, e na qual, insisto, terá também sido eliminada qualquer referência ao sagrado. “Concordo que as ambições de uma obra são extensas e excelentes”, escreve Caillois em Aesthetic Vocabulary (Vocabulário Estético) O poeta desta obra não se limitará à sua pessoa: “Ele liga a sua obra a um movimento mais amplo” (Babel). E o último capítulo de Babel, intitulado “A Grande Obra” fala sobre o possível efeito transformador (fundamento e dinâmica) que este tipo de trabalho pode ter na sociedade: “Se a vontade do artista se identifica com o desejo comum, é a grande oportunidade da arte. Nasce um estilo soberano onde cada obra particular encontra o seu espaço.”

É na obra de Saint-John Perse que Caillois encontrou os primeiros elementos da poética que procurava.

Aos olhos de Caillois, o que caracteriza esta obra em primeiro lugar é a sua “magnífica solidão”. É um “universo de exílio absoluto”, que se situa fora, não só do mundo literário estabelecido, mas também do domínio poético: aqui não há incoerência gratuita, não há jogo sarcástico, não há interioridade torturada, mas uma poesia da realidade, uma poesia discursiva. Já vimos alguma vez um poeta mais exterior?” pergunta Caillois.

Na solidão do exílio poético, cria-se uma presença do mundo, cria-se uma crónica da terra, uma prosa de altura impulsionada pelo “ir e vir planetário e imemorial” da “onda eterna” (Caillois) que Saint- John Perse evoca em Exile III (Exílio III): “Em todas as margens deste mundo, ameaçadas pelo mesmo sopro, pela mesma onda ameaçadora...”

Essa poesia faz um apelo ao mundo na sua totalidade. Saint-John Perse é para Caillois, “o poeta da primeira idade total”, uma época marcada por “uma fragmentação do quadro geográfico, histórico e cultural, estabelecido por tradições e distâncias”. A obra representa, assim, um “museu completo no qual estão alinhados, em extensas teorias, o que o homem concebeu em todos os lugares de estranho e mais comovente”.

Esse sentido do planeta, essa presença no mundo, vem acompanhado de um saber enciclopédico, com uma magnitude de dados que vão desde “coisas de terra aberta, coisas de mar aberto” (palavras do ofício, referências eruditas) até “coisas silenciosas mensagens do mundo” (Caillois). Mas acumular informações é uma coisa, saber estabelecer conexões é outra. Aqui encontramos a noção de “fundamento” mencionada acima: “Fiz raízes no abismo e no orvalho e no fumo das areias. Adormecerei em todos os lugares insignificantes e sem cor onde reside o gosto pela grandeza.” (Exílio)

O resultado não é apenas uma sensação ampliada do mundo, mas uma nova cartografia do ser humano e do assentamento humano na terra, baseada em “uma nova ciência” de “linhas inéditas”, que ergue “o cume da alta pureza”.

Local privilegiado de trabalho, “todas as praias deste mundo”.

 

5. No litoral

Passo agora para uma apresentação mais “pessoal” e menos bombástica de todo este processo.

Ao longo de nossa infância (por definição: falta de linguagem adequada), cada um de nós passa por diversos contextos semióticos antes de atingir o nível de linguagem que nos acompanhará por toda a vida e, em grande medida, a determinará.

De minha parte, criança e adolescente, conheci especialmente três.

O primeiro espaço foram as ruas de uma cidade. Ouvindo as pessoas que falavam, eu estava cada vez mais convencido de que ninguém entendia ninguém, que nenhum argumento chegava a nada, que tudo se perdia em ninharias. Para sair dessa situação, comecei a escrever textos: peguei nos elementos das conversas que ouvia e tentava escrever diálogos claros. Esse confronto com o que eu sentia ser a confusão das mentes, esse interesse pelo diálogo poderia, a longo prazo, ter feito de mim um dramaturgo: eu poderia ter criado dramas a partir da confusão. Nunca foi uma tentação, muito menos uma intenção.

O segundo “espaço semiótico” que conheci foi a cabine de controle onde trabalhava meu pai, ferroviário: um lugar de códigos muito precisos, que tinham de ser escrupulosamente respeitados, senão, descarrilamentos, catástrofes. Esta foi uma primeira aproximação à linguagem tecnocientífica, da qual ele admirava a precisão, enquanto me dizia que haviam eliminado tantos elementos da vida. Anos depois, li uma carta de Einstein na qual ele, embora elogiasse a matemática, dizia sentir falta do que chama de “deliciosas fatias da vida” e que esse era o drama da ciência.

O terceiro espaço era duplo.

De um lado, os arredores da cidade: campos, florestas, colinas, charnecas.

A princípio, foi a paisagem que me atraiu e o sentimento geral me preencheu. Depois a vida animal, cujas pegadas ele seguiu, cujos gritos ele imitou. E então havia o vento sobre a charneca. Formas e linhas (galhos de árvores, pedras), movimento e espaço, energia e vazio combinaram-se para revelar um “mundo” cuja linguagem eu procurava.

Do outro lado estava a praia, com o seu litoral, as suas marés, os voos das gaivotas gritando. Ora, segundo um antigo texto celta (A conversa dos dois sábios), “o litoral foi sempre um lugar preferido para os poetas”.

Porquê tudo isso?

Porque há ritmos e linhas complexas, sempre em mutação, e porque se ouve o rumor do mundo. É algo desta ordem das coisas, de que se recorda Saint-John Perse, celta-atlântico, aquele que ouve “a grande história das coisas à volta do mundo”, que tenta ler “as novas escritas circunscritas nos grandes xistos por vir” e que, em busca de uma “autoridade” (uma notável oratória), assim se dirige ao oceano: “Ensina-nos, Poder, o verso mais importante da primeira ordem, diz-nos o tom da primeira arte, exemplar Mar do primeiro texto.”

Essas são as premissas do que eu chamaria de litoralidade.

O que se ouve no litoral é uma oralidade, e o convite é ao ouvido para introduzir a oralidade na escrita. Esclareço, escrevendo, porque falando em oralidade, minha intenção não é em nenhum momento voltar à tradição oral. Pelo contrário, acredito nas virtudes e possibilidades da escrita.

Uma das principais funções da escrita é manter, perpetuar a memória. A palavra se esgota, se perde na confusão. A escrita cristaliza a palavra. Pelas suas qualidades de clareza, concisão e lógica, faz também evoluir o pensamento — enquanto numa sociedade de tradição oral, em que a palavra se mantém seguramente, o pensamento tende a imobilizar-se, numa mera repetição religiosa e ritual. A escrita tem, portanto, uma função de memória e de busca. Essa função muitas vezes está ligada a uma estética, que depende de uma cosmologia. Quer pensemos nos hieróglifos do Egito, em seu espaço solar percorrido por pássaros proféticos; na escrita chinesa, originada na contemplação da dança das garças, no movimento das serpentes, todas as linhas são a expressão do grande Tao cósmico; e até mesmo a escrita ogam dos países celtas, onde cada letra representa uma árvore, as três primeiras letras, B (bétula), L (rowan), N (freixo), que indicam o nome do deus solar, Beleno.

Ao evocar a oralidade no contexto da escrita, estou pensando em uma escrita não muito ‘escrita’, uma escrita, se assim posso dizer, aberta. Como Oscar Wilde coloca em seu ensaio “The Artist Critic”: “A escrita causou muitos danos à escrita. Devemos retornar à voz. Assim dizia Montaigne, em plena Renascença: “O que eu gosto é de um discurso simples e ingénuo, tanto no papel quanto na boca; um discurso suculento e nervoso, curto e contundente, não tão delicado e organizado, mas impetuoso e abrupto. E é também a preocupação de um escritor radical no momento do fim da modernidade: “A fonética da Europa e da América está a esgotar-se, escreve Ossip Mandlestam (Voyage en Arménie), seus depósitos têm limites. Hoje, os jovens já estão lendo Pushkin em esperanto. A cada um seus gostos. Mas que advertência!”

Antes de continuar ao longo da costa, uma palavra sobre a minha situação linguística básica, por assim dizer, entre duas línguas.

Parece-me bastante óbvio que, por múltiplas razões (incluindo a evolução histórica da língua), o inglês escrito é mais “oral” do que o francês. Assim, encontraremos, com menos frequência, no inglês o tom bombástico, o estilo cuidadoso, o refinamento excessivo que associamos hoje muitas vezes na França à escrita em geral e à poesia em particular (incluindo Saint-John Perse). Em vez disso, encontra-se na expressão inglesa do pensamento uma imprecisão, uma fraqueza, uma repetição que não encontraremos na precisão da prosa francesa. Está em jogo uma prática da linguagem e uma estruturação da mente. O ideal, dizem, seria juntar o escrito e o oral, o “artístico” (o sofisticado) e o prosaico, para conseguir um estilo firme e vigoroso, mas ao mesmo tempo móvel e aberto.

No nível expressivo, nada como transitar entre duas línguas para chegar ao significado da língua. É como a conjunção dos rios Dordogne e Garonne que formam o Gironde, que corre em direção ao oceano.

Nos últimos anos, esta é a minha situação entre o inglês e o francês.

No limiar de outra língua...

Durante muito tempo, nossa cultura considerou a linguagem apenas como um “meio de comunicação”. Ela só se interessa pelo Homem em geral, ou então, quando o contexto metafísico ou histórico já não dá mais, por uma proliferação de contextos humanos particulares (sociopsicológicos). A relação com o universo, a possibilidade de um universo-linguagem foi totalmente negligenciada. No entanto, esse sempre foi o objetivo das grandes culturas e das mais altas poéticas.

Desde o início das minhas tentativas de escrever, tive uma vaga intuição. Em meu primeiro livro, lemos o seguinte: “Não é a comunicação entre os homens que importa, mas a comunicação entre o homem e o cosmos. Coloque os homens em contacto com o cosmos e eles entrarão em contacto uns com os outros.” O livro seguinte fala de uma “gramática da lua, da chuva, da neve e do pinheiro”. E num livro posterior, descobrimos que o propósito do “grande trabalho” reside em “adquirir os fundamentos de uma gramática” e “buscar o caminho de uma lógica desconhecida”.

Poesia? Certamente. Mas não “só” poesia. Poesia, mas também linguística fundamental, filosofia primordial.

Se na segunda metade do século XX a linguística quase se tornou a disciplina de referência, isso aconteceu porque ela deveria informar-nos sobre as funções e finalidades da linguagem. Porém, no “campo” que é meu, o da poética, o do pensamento poético, ela sempre me deixou com fome.

Certamente fiquei interessado, até fascinado, pelas Estruturas sintáticas de Chomsky (1957), essa tentativa de descobrir os padrões básicos de línguas particulares e de alcançar uma gramática universal. Mas mesmo quando esse último campo começou a clarear, tive a impressão de continuar sempre dentro de esquemas abstratos, nunca tendo uma noção do mundo, sem ter acesso a um campo sensível.

Tive de esperar para conhecer a obra de Gustave Guillaume para ter a impressão de tocar, algo ao mesmo tempo geral e sensível, no campo linguístico. Para começar, gostei da crítica dura, com toque de humor, que Guillaume dirige aos colegas: “muito conhecimento aliado a um pouco de compreensão”. Ou ainda: “A linguística afastou-se de quase todas as questões importantes que são da sua competência e, portanto, distanciou dela as mentes mais profundas”. O que é mais importante em Guillaume, e que, levado às últimas consequências, provocou uma mudança de perspetiva, uma mudança completa de orientação nas ciências humanas, é que ele continua a insistir continuamente no fato de que “o homem se torna presente no universo e não apenas diante do homem”

Como aumentar essa presença? Como encontrar o idioma?

Com certeza não, pelo menos é essa a minha proposta, partindo do texto (por exemplo, tentando “desconstruí-lo”), mas voltando a si e fazendo o percurso (seria a prática “heurística” da viagem). Não poderíamos assim torná-lo mais flexível, abri-lo? Não poderíamos suprimir o ficcionalizador, imaginando-o, esse intermediário que não para de dar versões reduzidas e fabricações da realidade? A meditação não deveria ser praticada sempre que possível e, se possível, permanentemente, em lugares “desertos”: terras altas, costas, etc.?

E não poderíamos tentar vincular esta meditação com vários escritos? Por exemplo, escrevi frases devanagari nas areias de Landes ou caracteres chineses na neve dos Pirinéus. A ponto de confundir a escrita hindu com as linhas de maré, o ideograma chinês com as estrias geológicas gravadas nas rochas.

O sânscrito das areias, o chinês das falésias...

Iniciado na escrita da terra, para ouvir o mundo não-humano.

Na antiga prática chinesa, enfatizava-se a necessidade de o escritor, o poeta, realizar um trabalho “fora da escrita”. “Quando compus os meus primeiros textos, escreve Lu You, não buscava nada além de elegância. Com o tempo, fui compreendendo melhor e os meus textos pareceram-me, aos poucos, ir adquirindo algo de grandeza. Descobertas apareceram aqui e ali como pedras emergindo do riacho e criando redemoinhos.”[1]

Vamos voltar para a costa física.

A costa é antes de tudo um espaço aberto, um espaço de exterioridade, onde nos encontramos perante o “aberto” ao universo. Aí é um barulho, um boato, uns gritos. E então os ritmos, as linhas. Como integrar tudo isso (e ainda mais, porque um contexto natural é infinitamente perscrutável) num texto?

“Criar nomes” (esta é a etimologia da palavra “onomatopeia”) tem sido seguramente uma das principais motivações na formação das línguas. Mas no uso que faço das onomatopeias (imitação de gritos inseridos no texto, invenção de palavras não semânticas, mas radicalmente sensíveis) tenho menos necessidade de criar substantivos do que de deixar o universo falar. Por exemplo, ao intercalar cantos de pássaros, em meu texto humano, ao invés de falar sobre eles (o que também posso ocasionalmente fazer), dou-lhes a palavra.

Mas então, há os ritmos, as linhas. Na minha prática, a oralidade procura ir do geológico ao oceânico e das ondas do oceano às ondas improváveis. Isso influencia (literalmente falando) a prosódia, a própria composição do texto. Em La Gran Ribera, por exemplo, cada seção, cada “verso” é como uma onda que quebra.

Passei e continuo a passar muito tempo na praia, ouvindo ritmos, observando os padrões, as estruturas, as linhas. E a partir dessas linhas óbvias, podemos ir em direção àquelas linhas invisíveis que a mente pode traçar no globo: linhas isobáticas, isobáricas, isotérmicas, isoclinas, isódinas, isóquenas, isonefélicas, conectando lugares em todo o planeta que são semelhantes em temperatura, pressão atmosférica, força magnética, etc.

O resultado de todas essas investigações: um atlas sensível, o mapeamento de um mundo aberto, uma tectónica da Terra.

 Kenneth White

(Excerto de Lettres aux derniers lettrés, Éditions Isolato, 2017)
(Traduzido por Susana L.M. Antunes)



[1] O sublinhado é do autor.