1.    Um lugar

Início da década de 1960, uma palavra aparecia cada vez com maior frequência em meus cadernos: Ardecha. Mais tarde, eu soube que, para Stéphane Mallarmé - um dos poetas franceses mais interessantes do século XIX, que tinha ensinado, por certo tempo, inglês em Ardecha - no colégio de Tournon, 1863-1866 -, a palavra significava “a arte e a miséria”. Ela significa isso para mim também, e ainda muito mais.

Nesse “muito mais”, havia, primeiramente, uma geografia.

Entre O Puy e Valência, entre Lyon e Alès, uma terra caótica, com lugares extremamente variados, e cujo clima podia mudar rapidamente dos Alpes ao da Provença …

Uma geografia, uma psicogeografia.

Em termos socioeconômicos (os únicos considerados sérios na época), a Ardecha fazia parte do que se chamava então “o deserto francês”: despovoado, empobrecido e completamente distante da rodovia do Progresso, que estava sendo construída.

Foi esse “deserto” que, em 1961, decidi eleger como domicílio, ou mais precisamente, tentar uma experiência de moradia radical.

Nietzsche, muito lido por mim ao longo de meus estudos filosóficos em Glasgow, Munique e Paris, tinha falado da necessidade na época dos “últimos homens” - massivamente produtivos, mas intelectual e espiritualmente indigentes -, de um novo tipo de monastério. E Schopenhauer havia retratado o que ele nomeava “o monge natural” que, ao renunciar a tudo o que se chama de “sucesso”, segundo as normas da nova sociedade, decide consagrar seu tempo a cultivar suas faculdades: “Ele vive uma vida ativamente contemplativa, cujos frutos nutrem a existência humana em geral”.

Tal era a filosofia geral daquele que se instalou, em 1961, em uma antiga cabana no Vale de Beaume; de frente para o Tanargue (em celta, Monte Tonnerre), perto de Valgorge, que ele nomeou “Gourgounel” (em occitano, lugar de revigoramento).

Em Gourgounel, qualquer atividade física com uso de foice e picareta, nos interesses de uma economia de base, vinha acompanhada de intenso trabalho estudioso e meditativo.

Este tinha, primeiramente, a forma de estudos geológicos e arqueológicos. Em se tratando de suas regiões graníticas, xistosas ou calcárias, a Ardecha é um paraíso lítico, paleolítico - seu subsolo está trufado de grutas pintadas, dentre as quais algumas das mais antigas do mundo, repleta de desenhos e de sinais: penso naquela da Combe d’Arc, com seu crânio de urso e sua cabeça de coruja  esculpida no calcário.

Esses estudos geográficos e arqueológicos foram prolongados por essa arte-ciência chinesa, o feng-shui (“conhecimento do vento e da água”), pela leitura da “escrita secreta” da paisagem em termos de chi (energia) e de li (organização) e que devia ser a condição de qualquer habitação humana sobre a terra. No Grande Estudo (Ta Hio), lê-se: “Abaixe os olhos, para compreender as linhas da terra; levante os olhos para compreender os sinais do céu”.

Esses estudos topográficos, topológicos, foram levados ainda mais longe por uma meditação filosófica, como no Lankavatara Sutra, onde se lê: “Quando os nomes e as designações desaparecem, o que permanece é a natureza essencial das coisas”.

Em suma, em Gourgounel, eu estava reunindo elementos, lançando as bases para o que eu chamaria mais tarde de geopoética.

 

2.    As palavras e o restante

A finalidade da geopoética, que é enorme, ou seja, ao mesmo tempo, imensa e fora das normas, é abrir um novo espaço cultural e reconstruir o mundo. Mas, antes que tal declaração seja descartada de qualquer discurso sério por ser considerada idealista, utópica, extravagante e, assim por diante, para que ela tenha uma força operativa, dois pré-requisitos são necessários: definir bem as palavras, os termos que se utiliza, a fim de saber exatamente sobre o que falamos; analisar bem o contexto socio-histórico-cultural no qual nós nos encontramos (e não nos encontramos) e no qual esse projeto se insere.

Consideremos, em primeiro lugar, uma palavra simples: mundo. Como todas as palavras simples, ela tem uma longa história e uma estratigrafia complexa.

Nas línguas romanas, a palavra monde em francês, mundo em espanhol, mondo em italiano, tem, a princípio, uma conotação que remonta ao latim mundus - lugar onde, na fundação de cada cidade, cada futuro cidadão colocava um torrão de sua terra natal, de seu território original. É significativo para o progresso da civilização que guardemos esse sentido estético apenas de modo negativo: imundo. Do mesmo modo, a palavra grega kosmos, que significa “bela totalidade em movimento”, aplica-se hoje apenas ao espaço interestelar e se encontra, em sentido estético, apenas na palavra coméstico.

Em inglês, a palavra world remonta ao termo germânico wer-alt, que tem, antes de tudo, um sentido histórico: uma época de homens. É esse mundo que Shakespeare apresenta como “uma história contada por um idiota, cheia de barulho e de furor, que não significa nada”; e cujo poeta do século XIX Wordsworth diz que “nos agride muito”, nos “sobrecarrega de preocupações”, entravando qualquer realização existencial, e do qual o cidadão tenta se escapar refugiando-se na fantasia, correndo para a distração mais próxima etc.

O filósofo Hegel pretendia, ao menos em determinado momento de seu itinerário, ver um sentido nisso: a História era razoável … ela tinha um sentido; ela levava a algum lugar. Esse “algum lugar” ia tomar várias formas, segundo os diversos contextos ideológicos. Na Alemanha de Bismarck - mais tarde, prolongada pelo “terceiro império” do Nacional-socialismo, era a de um Estado superpotente que dominaria o mundo. Mais à leste, na Rússia marxista e lenista, seria a criação de um Estado tendo por missão colocar fim a todos os Estados e inaugurar o Comunismo Mundial. No oeste liberal, seria um Supermercado de felicidade para todos. O projeto de Bismarck-Nazi acabou nas chamas de Berlim. A estrela marxista se apagou por sua vez. Permanece apenas o Supermercado, mais “super” do que nunca.

E chegamos ao Contexto Contemporâneo: um grande vazio cheio de nada.

No céu, acima desse conjunto de imagens e de barulho, pode-se distinguir duas ideias gerais: a da Geopolítica e, mais recentemente, a da Ecologia.

A noção de “geopolítica” foi lançada por Friedrich Ratzel em sua Politische Geographie (Munique, 1897). Ela foi retomada em 1926, de maneira reduzida e propagandista, em sua Zeitschrift für Geopolitik, por Haushofer, quem ia torná-la ideologia do nacional-socialismo hitleriano. Foi Jacques Ancet, professor do Instituto de Estudos Superiores Internacionais de Paris, que, ao ver tais tendências emergirem na Alemanha, introduziu o termo geopolítica na França na década de 30, humanizando-a com base nos Princípios de geografia humana de Vidal de La Blache (1922). Hoje, a geopolítica estuda a relação entre os Estados no tabuleiro de xadrez mundial em termos de recursos, mercados e segurança. A geopoética, por outro lado, está centrada na relação entre o Homem (mas, que Homem?) e a Terra. Ela cuida do básico. Se a geopolítica é globalista, a geopoética pretende ser transformadora.

Aqui precisamos falar sobre ecologia.

Para muitos, esse termo é recente, última moda nos tetos do mundo. De fato, ele remonta aos estudos biológicos de Ernst Haeckel (1850), que dizem respeito à relação entre os organismos e seu meio. Hoje, pode-se distinguir várias ecologias: a ecologia científica; uma ecologia humana e social que remete a H.G. Wells (As Perspectivas do Homo Sapiens) na década de 40 do século XX; e a ecologia de Gregory Bateson, a saber, a ideia de que as manifestações mais fecundas do espírito humano estão intimamente relacionadas ao grande sistema não-humano biocósmico (Rumo a uma ecologia do espírito, da Natureza e do Pensamento), que emergiu nos anos 70.

Atualmente, espalha-se nas mentes o que eu chamaria de catequismo ecológico, compreendendo este um conjunto de preocupações com contornos frequentemente muito apagados; enquanto que, no plano fundamental, o discurso mitológico, simbólico, arquétipo e sacral permanece.

Além desse catecismo, existem solitários que empurram sempre o pensamento para mais longe; mas, se o lemos, é de modo superficial, e não em sua totalidade - em muitos casos, a obra completa não está nem disponível.

Não se escuta Bateson quando ele, após ter falado sobre ecologia, diz que estará, em breve, pronto “para as sinfonias e os albatrozes”.

A imagem que corre pelas ruas de um dos meus velhos companheiros de estrada, Thoreau, é quase caricatural. Não foi à toa que, próximo ao final de sua vida, esse solitário virou as costas para a América - a corrida pelo ouro e pelo horror - para errar ao longo do litoral atlântico, mergulhado em um sonho dificilmente possível de ser explicado.

Considerem o caso de Aldo Leopold: para muitos, ele é o Jean-Baptiste; senão, o Jesus da ecologia contemporânea.

Em 1935, Léopold, guarda florestal de seu estado, adquiriu o que restava de uma antiga fazenda situada nos sand counties - terras arenosas de Wisconsin, espécie de “deserto”, no nordeste dos Estados Unidos. Foi lá onde ele escreveu A Sand County Almanac (publicado em 1943) que, além de um almanaque propriamente dito - anuário de “acontecimentos naturais”-, contém a história de uma série de viagens através de territórios americanos e uma coleção de ensaios intitulada The Upshot (relatório final) à qual é necessário acrescentar todos os ensaios da antologia Round River (a edição corrente dos trabalhos de Leopold contém apenas dois desses), pois aí há muitos detalhes adicionais.

Se Aldo Leopold estivesse convencido de que a grande invenção dos tempos modernos não era nem  a indústria nem o rádio nem a televisão (nem isso nem aquilo), mas a preocupação ecológica, fica evidente que o seu objetivo era aprofundar ainda mais a experiência homem-terra e encontrar uma linguagem ainda mais densa do que a eco-lógica para essa relação. É assim que o vemos ir da ecology ao land ethic e, daí, às noções de estéticas. Mas, permanece-se com isso ainda com um discurso convencional. É em algumas fórmulas, surgidas de modo improvisado, que se vê aparecer a densidade (“equações ainda mais complexas do que as da teoria da relatividade”) buscada: “uma paisagem outonal nas florestas do norte = a terra + o bordo-vermelho + uma perdiz ruffed. Em termos de física convencional, a perdiz representa apenas um milionésimo de hectares. No entanto, se subtraímos a perdiz, nada mais resta no geral. Uma quantidade enorme de força motriz de um gênero desconhecido foi perdida” (sou eu quem ressalta).

É aqui que nos encontramos no limite da geopoética.

 

3.    As grandes linhas da geopoética

Não cabe aqui fornecer apenas um “esboço” da geopoética, pois já existe toda uma literatura, dentre as quais O Platô de Albatroz — Introdução à geopoética e Ao longo da HistóriaRumo a um espaço-tempo porvir.

Tratar-se-á aqui apenas de grandes linhas, mas elas são primordiais.

Até aqui, a civilização - e seu lar de energia central, a cultura - foi conduzida por três grandes forças, três grandes discursos: o mito, a religião e a metafísica. Essas forças existem ainda hoje, mas sob formas degradadas… de modo que, nossa civilização, no fundo, não é levada por nada. Radicalmente, é tida como uma civilização sem cultura - salvo, claro, se, como é o caso, compreende-se por “cultura” o acúmulo de objetos culturais.

Se estudarmos as culturas do mundo que tiveram validade e durabilidade (eu levei anos fazendo isso), constataremos que todas elas se desenvolvem em torno de um motivo principal. Na cultura paleolítica, é a relação com os animais - vide as cavernas pintadas. Na cultura chinesa, é uma concentração cósmica da potência - potência cultural, entende-se: a China como centro do mundo; Pequim como centro da China; a Cidade* proibida como centro da Cidade… Na cultura grega, é primeiramente nas escolas dos filósofos onde se discute a boa conduta de vida e a constituição de um Estado; em seguida, a Ágora , onde se debate democrático-demagogicamente sobre política. Na cultura cristã, é a Virgem Maria e Cristo, cujos temas são caridade e salvação da alma.

A questão que se colocava para mim era a seguinte: Para uma cultura mundial hoje, além das diversas ideologias, qual podia ser o motivo central ? A resposta se impunha: a Terra, mesmo sobre a qual nós tentamos - na maioria das vezes, muito mal - viver. Daí, o “geo” na expressão geopoética, liberando assim essa palavra de tudo o que se acumulou entorno dela ao longo dos séculos: desde a religião da Mãe-Terra à hipótese Gaia.

Quanto a outra parte desse termo denso e complexo, geopoética, não há em nossa civilização palavra mais mal compreendida do que poética. Causa-me repugnância fazer uma lista de todos os empregos triviais, sem contar todas as práticas limitadas. Em minhas próprias pesquisas, eu retomei até o nous poietikos (inteligência poética) de Aristóteles, enriquecendo-o de diversas modos com a finalidade de encontrar o equivalente para nós do que foram, para a cultura grega, a poética oceânica de Homero (que irriga a ágora) e, para a cultura chinesa, O Livro das Odes (que, de modo oposto à excessiva centralização da cultura chinesa, veícula “o vento dos territórios).

Para começar a concluir… Se eu avanço com um termo como geopoética, ou seja, eu me situo em um mundo pré-copernicano ? Hoje não é necessário mergulhar em um espaço interestelar e incitar as crianças a se tornarem astronautas, a sonhar em visitar a Lua, Martes ou ainda além ? De modo algum. O fato é que, permanecendo fiéis à Terra, à qual nós estamos biologicamente adaptados, nós estamos forçosamente no Cosmos; enquanto que, ao querer conquistar o espaço, acabamos não estando em nenhum lugar. Saber viver poeticamente na Terra”, dizia Hölderlin, ultrapassa todos os méritos, todas as proezas.

Viver poeticamente na Terra, eis aqui talvez a fórmula mais completa (mais bem compreendida, mais bem desenvolvida).

Essa será minha última palavra hoje.

Resta-me apenas agradecer a vocês por terem me escutado.

 

                                                                                        Kenneth WHITE

12 de agosto de 2019
(conferência lida em Valgorge no dia 31 de agosto de 2019).

(Traduzido por Jordelia Brandão Schunke Galley)

 

Em algumas cidades, como Paris e Carcassonne, o vocábulo cité se refere ao bairro mais antigo da cidade, ao centro primitivo da cidade (nota da tradutora).