Em 1° de abril de 1801, vindo da ilha de Cuba, Alexandre de Humboldt se encontrava em Cartagena das Índias, na costa da Nova Granada (a Colômbia atual). Então, ele escreve a seu irmão Guilherme:
«Se você recebeu a minha última carta de Havana, você deve saber que eu modifiquei meu plano inicial e que, em vez de ir à América do Norte, ao México, eu retornei à costa meridional do Golfo do México para viajar de lá para Quito e Lima. Demoraria muito explicar a você todas as razões...»
No momento em que ele escrevia essa carta, Humboldt já estava bastante engajado em sua imensa «viagem às regiões equinociais do Novo Continente», que tinha iniciado no dia 5 de junho de 1799 e ia prosseguir até o dia 3 de agosto de 1804.
É essa viagem que qualifico como «peregrinação geopoética». Eu vou tentar falar sobre a razão de ser dessa viagem, todas suas razões de ser – dizendo de outro modo, vou tentar extrair sua lógica total. Direi ainda qual é a razão pela qual eu a chamo de «geopoética». Mas, para começar, uma palavra quanto ao uso respectivo do singular e do plural em meu título e em meu texto. Ao usar «peregrinações geopoéticas» no plural, eu penso menos nas outras viagens efetuadas por Humboldt (especialmente na Ásia Central) do que nos prolongamentos dessa mesma viagem na América Equinocial – nas pistas diversas que Humboldt abre no espírito. De fato, a viagem americana percorre toda a vida de Humboldt, ao modo da grande cordilheira continental que se estende entre o Alasca e a Terra do Fogo. Humboldt ia passar trinta anos publicando os resultados dessa viagem, em trinta volumes. Nesses livros, assim como em alguns outros (Quadros da natureza, Cosmos), ele ia tentar, a partir da experiência da viagem ao novo continente, abrir um novo campo intelectual e poético, digamos, um novo mundo.
Humboldt nasce em 1769, em terras prussianas. Do lado paterno, seu avô tinha sido capitão e seu pai era, ao mesmo tempo, comandante do exército e camareiro do príncipe imperial. Do lado materno, há ascendência francesa e escocesa, dentre a qual se encontra um protestante emigrado do Gard denominado Jean Colomb...
No castelo de Tegel, residência berlinense da família, o jovem Alexandre recebe inicialmente, por intermédio de tutores, excelente educação, marcada ao mesmo tempo pela Aufklärung alemã, pelo enciclopedismo francês e pelo romantismo nascente. Isso resulta nele uma clareza de espírito, um vigor do pensamento, um enciclopedismo esclarecido, um ímpeto transnacional - ele falará de «povos que acreditam ser aborígenas porque desconhecem sua filiação» – e um desejo de unidade. Mas todas as religiões, em sua opinião, são compostas por um tratado de moral (muitas vezes admirável), por um sonho geológico (gênese etc) e por um «pequeno romance histórico». Quanto à crença na imortalidade da alma, é simplesmente «um conto azul». A essa base, por outro lado, tão cheia de promessas, falta, contudo, um elemento: a felicidade. O pai do jovem Humboldt morre quando ele tem dez anos, e a criança sofre com a falta de afeto de sua mãe – aos vinte e três anos, ao evocar os anos passados em Tegel, ele falará sobre sua «triste existência».
A viagem que terá tanta importância na vida de Humboldt é inicialmente para ele um meio de sair desse contexto infeliz. Mas, o desejo inicial é reforçado por leituras e imagens: a narrativa da expedição concluída por Vasco Nuñez de Balboa, o primeiro dentre os europeus a contemplar as alturas de Quarequa, no istmo do Panamá, a parte oriental do mar do Sul; a forma do mar Cáspio vista em um mapa; um quadro das margens do Ganges; uma árvore dos trópicos vista no Jardim Botânico de Berlim. A ideia de viagem já é forte nele quando, após ter passado pelas universidades de Frankfurt e de Göttingen, ele encontra Georg Forster - geógrafo, escritor, professor, que tinha participado da segunda viagem de Cook ao redor do mundo (1772-1775) – e cujas descrições de Tahiti tinham despertado em todo o norte da Europa mais do que curiosidade: uma cobiça geográfico-erótica. Unidos pela amizade, Forster e Humboldt partem juntos para a Inglaterra e para a França. Além da excitação da viagem, há o idealismo político no ar, sopra um vento de liberdade – em Paris, Humboldt se transporta da areia ao «templo da liberdade», ainda incabado. Essas esperanças políticas vão decepcionar: Forster morre em Paris, desesperado, em 1794. Mais tarde, Humboldt verá Napoléon restabelecer a escravidão e falará sobre a estagnação do estado social. Mas, ao deixar de lado o ciclo da esperança, da agitação e da decepção, ele sabe que tem uma obra para concluir, uma obra fundamental e de longo prazo. No início dos anos 1790, ele está na Academia de Comércio de Hamburgo. Em seguida, nós o encontramos na Academia das Minas de Freiberg, de onde ele sai diplomado em 1792. Ele já realizou seus primeiros trabalhos de botânica, de química e de mineralogia, e uma primeira carreira (mas ele não perde de vista sua ideia de grande viagem) parece completamente traçada: desde a sua saída da Academia das Minas, ele é acessor do Departamento das Minas e Fundições da Prússia; três anos depois, ele é conselheiro superior das minas. Tudo isso pode parece pouco «poético». Mas, não esqueçamos a primeira carreira, bastante parecida, de Novalis: grande parte do romantismo sai da geologia (estratos) e do que Humboldt designa por geognose (configuração do terreno).
De qualquer modo, para Humboldt, essa passagem pelas profundezas da terra foi apenas uma etapa. Logo, ele ia reencontrar o ar livre e a vastidão. Em 1796, ocorre a morte de sua mãe e ele recebe sua parte da herança: 312 000 francos em ouro - o suficiente para realizar plenamente sua viagem dos sonhos. Em 1797, escreve: «Minha viagem está irremediavelmente decidida. Eu a preparo ainda durante alguns anos e reúno os instrumentos. Permaneço na Itália por um ano ou um ano e meio para me familiarizar com os vulcões. Em seguida, iremos à Inglaterra via Paris. E prosseguiremos no caminho para Índias Ocidentais».
Notemos que não se trata absolutamente, assim concebida a viagem, de uma aventura, de vagabundagem, mas de um plano de trabalho, de um plano de vida.
Humboldt continua seus estudos: astronomia, química, mineralogia, galvanismo e botânica. Em 1798, ele está em Paris para entreter-se com estudiosos franceses. Lá, ele encontra Aimé Bonpland, originário de La Rochelle, que será seu companheiro de estrada ao longo da grande viagem equinocial. E ele começa a projetar itinerários. Bougainville lhe propõe uma viagem ao redor do mundo, organizada pelo Diretório: primeiro ano, o Paraguai e a Patagônia; segundo ano, o Peru, o Chile, o México e a Califórnia; terceiro ano, os mares do Sul; quarto ano, Madagascar; quinto ano, a Guiné. Ele está pronto para ir, mas o projeto é cancelado por falta de fundos. Il vai para Marselha, decidido a embarcar a qualquer custo: «Eu queria passar o inverno na Argélia e no Atlas onde há ainda na província de Constantina, de acordo com Desfontaines, 400 plantas desconhecidas. De lá, eu queria encontrar Bonaparte por Sufetula, Tunis e Tripoli, com a caravana que vai para Meca». Ele espera dois meses, mas a fragata que ele esperava naufraga. Ele tenta sair para Tunis, mais o bey turco de Alger suspende o tráfego marítimo. Ele abandona Marselha e, com Bonpland, segue pela costa do mediterrâneo: Catalunha, Tarragona, Balaguer e Valência... Em Madri, ele conseguiu finalmente uma coisa rara: um passaporte para as colônias espagnolas da América. Então, saída para a Coronha, onde os dois companheiros embarcam para a Venezuela.
«Que felicidade ... minha cabeça gira de alegria ... Que tesouro de observações eu vou poder realizar para enriquecer meu trabalho sobre a construção da terra ...colecionarei plantas e fósseis e poderei fazer observações astronômicas, com instrumentos excelentes ... Mas, tudo isso não é o principal objetivo de minha viagem. Minha atenção não deve nunca perder de vista a harmonia das forças concorrentes, a influência do universo inanimado sobre o reino animal e vegetal».
Sublinho essas duas frases, pois temos aí a primeira formulação do que está verdadeiramente em jogo. Se, na viagem de Humboldt, não se trata apenas de simples aventura, tampouco se trata de simples expedição científica. Seu plano de trabalho tem várias camadas e está aberto a configurações inéditas. No topo, há uma concepção da harmonia, uma estética, o que ele acaba de evocar. Basicamente, como fundamento de todas suas pesquisas, há a busca da felicidade. No dia 16 de julho de 1799, em Cumana, península de Araya, Humboldt escreve: «Nós estamos aqui, enfim, no país mais divino e maravilhoso. Plantas extraordinárias, enguias elétricas, tigres, tatus, macacos, papagaios e numerosos, muito numerosos índios puros – semisselvagens, uma raça muito bonita e muito interessante de homens... Desde a nossa chegada, corremos por toda a parte como loucos ... Sinto que serei feliz aqui.» O saber está ligado ao ser, o ser está ligado ao meio ambiente, e esse complexo campo pode ser um lugar de transcedência.
Contar toda a minha viagem não está em meus planos... Destacarei apenas alguns pontos e algumas passagens.
O primeiro ponto a ser observado talvez seja que, ao contrário de muitas expedições mais modernas, Humboldt nunca insiste no lado «exploração» (moral ou técnica) de sua viagem. Que a caminhada por lugares tenha sido muito difícil, isso é certo. Desde o início, Humboldt evoca com humor a estrada de Cumana a Caracas: «A estrada de chão de Cumana a Nova Barcelona, e de lá a Caracas, está mais ou menos no mesmo estado anterior ao da descoberta da América». É preciso imaginar um terreno enlameado, blocos de rochas dispersos, vegetação densa, córregos e barras, assim como carregadores (dez, quinze, vinte e cinco) e animais de carga (aqui, dois bois; lá, vinte mulas) carregados com instrumentos e de mantimentos. É preciso imaginar uma ausência quase total de cartografia: «Essas regiões são tão selvagens e tão pouco frequentadas que, exceto alguns rios, os índios desconheciam o nome de todos os objetos que eu notava com a bússola – nenhuma observação de estrela me tranquilizava na latitude, a uma distância de um grau». É preciso imaginar uma canoa, de quarenta pés de comprimento e três de largura, que era de fato apenas um tronco de árvore cavado pelo duplo meio do machado e do fogo. Ao menor movimento imprevisto e não anunciado, todos – homens e caixas de coleções de animais – corriam o risco de emborcar. Acrescente a isso o fato de que Humboldt correu risco de morte mais de uma vez, especialmente no vulcão de Pichincha, onde, para fazer observações, ele se estabeleu «sobre uma pedra que, por estar sustentada apenas de um lado e minada na parte de cima, se avançava em forma de varanda sobre o precipício». Mas há muito pouco de tudo isso na narrativa. Humboldt não se interessa pela exploração, ele se interessa pelo conhecimento. Sobre Horace Bénédict de Saussure (Viagem nos Alpes, 1779), que ele cumprimenta passando como «o maior cientista e o mais intrépido dos viajantes», escreve, e talvez seja uma crítica implícita: «Essas excursões penosas, cujas narrativas excitam geralmente o interesse do público, oferecem apenas um número muito pequeno de resultados úteis ao progresso das ciências». E pode-se ir ainda mais longe. Humboldt, cientista e amante de conhecimentos exatos, lamenta o custo da viagem que a intenção científica traz consigo: «Quando, cheios de instrumentos de física e de astronomia, somos tentados a dizer, ao final de sua carreira: felizes os que viajam sem instrumentos que se quebram, sem herbários expostos para molhar, sem coleções de animais que se degradam. Bem-aventurados os que percorrem o mundo para ver com seus próprios olhos, tentando compreendê-lo, recolher as doces emoções que o aspecto da natureza suscita, cujos prazeres mais simples são também mais calmos e menos propensos a serem pertubados». Mas, pode-se ainda não aceitar sua alternativa: de um lado, o complexo; do outro, o simples. Pode-se aceitar inicialmente o complexo como abertura, se assim posso dizer, das primeiras dobras. Em seguida, como frequentemente somos obrigados a fazê-lo em terras estrangeiras, podemos utilizar esses primeiros estudos como traduções, primeiro passo para a compreensão e para a expressão do espírito.
No dia 7 de fevereiro de 1800, Humboldt deixa Caracas e segue para Porto Cavalo na costa do Caribe. De lá, ele desce para Santo Fernando, no Apure, um afluente do Orinoco. Ele sobe então o Orinoco até o Rio Negro, nos confins do Brasil; em seguida, ele retorna ao Orinoco pelo Casiquiare. Em suma, setenta e cinco dias, dois mil e duzentos quilômetros, consagrados à coleta de «espécimes», a medidas barométricas, termométricas, trigonométricas, astronômicas etc e ao seu jornal. Primeiro ponto a notar aqui, é a sensação de bem-estar: «Eu sou criado para os Trópicos... nunca fui tão consistentemente saudável ... fiquei em cidades onde a febre amarela devastava e nunca tive a menor dor de cabeça ». Há o bem-estar interior, e há a abordagem externa. Eis que Humboldt evoca os llanos (os estepes) ao sul de Caracas: «O aspecto do país é sempre o mesmo. Não havia luar, mas os aglomerados de nebulosas - que ornamentam o céu astral - iluminavam, ao se pôr, uma parte do horizonte terrestre. Esse espetáculo imponente da abóboda estelar, que se apresenta em sua imensa extensão, essa brisa fresca que percorre a planície durante a noite, esse movimento ondulante da grama por toda a parte onde ela atinge alguma altura, tudo nos lembrava a superfície do Oceano. A ilusão aumentava especialmente (não me cansa dizer) quando o disco do sol subia no horizonte, repetia sua imagem pelo efeito da refração e, ao perder logo sua forma aplainada, subia rapidamente e direto em direção ao zenite». Nesse texto, vários elementos serão observados: Em primeiro lugar, uma sensação astronômico-telúrica; em seguida, a justaposição de sensação bruta e de explicação científica («efeito de refração»), sem que um amálgama satisfatório ainda tenha sido encontrado; e finalmente, o prazer da expressão, e ainda da repetição («não me caso de dizer»). Eis outro texto, que fala das cataratas de Maypures:
«Há aí um ponto de onde se descobre um horizonte maravilhoso. O olho beija uma superfície espumosa que tem cerca de duas léguas de extensão. Do meio das ondas se elevam rochas negras como o ferro e semelhantes a torres em ruínas. Cada ilha, cada pedra é ornamentada com árvores que impelem galhos vigorosos: uma nuvem espessa flutua constantemente acima do espelho das águas e, através deste vapor de espumas, se enlaçam os altos cumes das palmeiras Mauritia. Quando, à noite, os raios ardentes do sol vêm se dissipar na nuvem úmida, efeitos de luzes produzem um espetáculo mágico. Arcos coloridos desaparecem e reaparecem alternadamente; e suas imagens vaporosas flutuam segundo a vontade dos ares.
Tudo ao redor, sobre a coluna nua das rochas, as águas murmurantes acumularam, durante a longa estação das chuvas, ilhas de terra vegetal, ornamentadas de melastomas e de droseras, de samambaias e de pequenos mimosas com folhagem prateada; essas ilhas formam leitos de flores no meio das rochas nuas e desoladas. Elas suscitam no europeu a lembrança desses blocos de granito chamados jardins pelos habitantes dos Alpes que, cobertos com flores, se elevam isoladamente no meio dos glaciares da Saboia.
No horizonte azulado, o olho repousa sobre a cadeia de Cunavami, formada pela parte detrás de montanhas que se estendem ao longe e terminam, de modo abrupto, em um cone truncado. Esse cone, nomeado pelos índios Calitamini, apareceu para nós ao pôr do sol como uma massa ardente. O mesmo fenômeno ocorre a cada noite. Ninguém nunca se aproximou dessa montanha. Talvez o fato de ela resplandecer com o brilho seja devido a jogos de luz produzidos pelos reflexos do talco ou do xisto micáceo.
Durante os cinco dias que nós passamos na vizinhança das cataratas, reconhecemos, com surpresa, que o barulho da massa de água que cai é três vezes mais forte à noite do que durante o dia. Observa-se o mesmo fenômeno nas quedas de água da Europa. Mas, a que causa atribuí-lo em um deserto onde nada interrompe o repouso da natureza? Provavelmente a correntes ascendentes de ar quente que, pela desordem que elas trazem ao equilíbrio da elasticidade atmosférica, impedem o som de se propagar e desviam irregularmente suas ondulações. O frescor da noite põe fim a essas correntes.»
Mais uma vez, sensações fortes e finas, vocabulário técnico preciso (palmeiras Mauritia, melastomas e droseras...), mas vocabulário «globalizante» pouco satisfatório: maravilhoso, mágico... Outro exemplo, essa visão «geognóstica» de outra parte do Orinoco:
«A geografia dessa região, a forma das rochas de Kéri e de Oco, que tão bem se assemelham a ilhas, as escavações perfuradas pelas águas nas primeiras dessas colinas - e que são colocadas exatamente ao mesmo nível daquelas da ilha Ouivitari, situada no lado oposto -, todas essas aparências provam que o Orinoco preenchia outrora a baía hoje seca. Presumivelmente, as águas formaram um vasto lago, contanto que foram interrompidas pelo dique do norte. Quando a barreira foi derrubada, a savana hoje habitada pelos índios Guareca saiu do meio das águas. Talvez o rio envolverá ainda durante muito tempo as rochas de Keri e de Oco que, ao elevar-se do antigo leito como torres construídas sobre uma montanha, apresentam aos olhares um espetáculo muito pitoresco. As águas, baixando gradualmente, acabaram se desviando para a serra que margeia o lado do oriente.
Várias circonstâncias confirmam essa suposição. O Orinoco, de fato, tem como o Nilo, próximo a Philae e a Suez, a notável propriedade de colorir em preto as massas graníticas com um branco avermelhado, que ele lava há milhares de anos. Em todo o lugar aonde as águas podem chegar, observa-se sobre as rochas que margeiam as costas uma camada cinzenta contendo magnésio e, talvez, carbono, que penetra apenas um décimo de linha dentro da pedra. Essa cor preta e as cavidades de que falávamos mais acima marcam ainda o antigo nível do Orinoco.
Na rocha de Keri, entre as ilhas de Cataratas, nas colinas de gneisse de Cumadaminari no topo da ilha Tomo, enfim, na foz do Jaú, essas cavidades escuras estão elevadas de 49 a 59 metros acima da superfície atual das águas. A existência delas nos ensina (o que, de resto, pode ser observado na Europa em todos os leitos dos rios) que as correntes cuja magnitude excita hoje nossa admiração são apenas pequenos fragmentos de enormes massas de água que existiam nos tempos ante-históricos.
Observações simples não escaparam aos rudes nativos da Guiana. Em todos os lugares, os índios nos faziam observar os traços do antigo nível. Vê-se mesmo em uma planície de gramíneas, perto de Uruana, uma rocha de granito isolado, sobre a qual, segundo a narrativa de homens dignos, de fé, estão cavados profundamente a uma altura de 26 metros das imagens que parecem dispostas por fileiras e que representam o sol, a lua e as diferentes espécies de animais, especialmente, crocodilos e boas. Ninguém hoje poderia chegar, sem andaime, às encostas abruptas dessa rocha, que merece a atenção mais escrupulosa da parte dos futuros viajantes. Os caracteres hieroglíficos gravados nas montanhas de Uruana e de Encaramada são também colocados em alturas inacessíveis...
O extremo norte das cataratas chama a atenção por imagens naturais que representam, digamos, o sol e a lua. O nome da rocha Keri deriva, de fato, de uma mancha branca que resplandece ao longe, e na qual os Índios acreditaram reconhecer uma semelhança impressionante com o disco da lua cheia. Eu não pude escalar as encostas escarpadas dessa rocha, mas suponho que a mancha branca provenha de um nó de quartzo considerável, formado pelo encontro de veias cruzadoras, que se desprendem sobre o granito preto acizentado.»
Como para os outros textos citados, será notada a precisão do detalhe, a insuficiência do vocabulário global («um espetáculo muito pitoresco») e esse traço das luzes de que eu gosto - tanto os viajantes nos países exóticos estão prontos para engolir o primeiro «mistério» vindo, prontos para aspirar voluptosamente o último sopro de ranço «sagrado»; traço esse que consiste em traduzir a pedra da lua Keri em mancha branca a partir de um nó de quartzo considerável. Em outro lugar, em terra Inca, ele indicará que o sangue chamado tahualpa, que supomos ver sobre uma pedra, é de fato «agregações de anfibólios e piroxenas formados naturalmente na pedra».
Humboldt «desmistifica» então, estando sempre pronto - pois ele sabe que o império da fábula pode abrigar verdades – a inclinar-se sobre imagens gravadas pela mão do homem em tal rocha granítica. Mas, prossigamos nossa jornada. Aqui a evocação do próprio «formidável Orinoco»:
«Ao sair do Rio Apure, nós nos encontramos em um país de um aspecto completamente diferente. Uma imensa planície de água se estendia diante de nós como um lago a perder de vista. Ondas branqueadoras subiam a vários pés de altura pelo conflito da brisa e da corrente. O ar não ressoava mais gritos perfuradores das garças, dos flamingos e das espátulas que se colocam em longas filas em ambas margens da costa. Nossos olhos buscavam em vão esses pássaros nadadores cujas estratégias engenhosas variam em cada tribo. Toda a natureza parecia menos animada. Apenas reconhecíamos nos buracos das ondas alguns grandes crocodilos abrindo obliquamente, com a ajuda de suas longas caudas, a superfície das águas agitadas. O horizonte estava bordado por um cinturão florestal; mas, em nenhum lugar, essas florestas prolongavam até o leito do rio. Vastas praias, constantemente queimadas pelos ardores do sol, desertas e áridas como as praias do mar, assemelhavam-se, de longe, pelo efeito da miragem, com as marés de remansos. Longe de fixar limites do rio, essas costas arenosas as tornavam incertas. Elas as aproximavam ou as distanciavam alternadamente, segundo o jogo variável das raios irrefletidos.
A esses traços dispersos da paisagem, a esse traço de solidão e de grandeza, reconhece-se o curso do Orinoco, um dos rios mais majestuosos do Novo Mundo. Por toda a parte, as águas, como as terras, oferecem um aspecto característico e individual. O leito do Orinoco não se assemelha, de modo algum, aos leitos do Meta, do Guaviare, do Rio Negro e do Amazonas. Essas diferenças não dependem unicamente da largura ou da velocidade da corrente : elas dependem de um conjunto de relações que é mais fácil capturar, quando se está nos lugares, do que definir com precisão.»
Desse texto, além das características já levantadas em outros, eu retenho essa última observação concernente a um «conjunto de relações que é mais fácil capturar, quando se está nos lugares, do que definir com precisão». O que é esse conjunto de relações? Como saber? Já vemos surgir a questão da geopoética. Mas, no momento, acumulemos outros elementos da viagem física. Eu gostaria de evocar as corredeiras de Atures, esses abutres e esses bacuraus de voz crescente que voam solitários nos sulcos profundos do vale, cuja sombra desliza sobre os flancos da rocha e desaparece rapidamente. Ou ainda essa platô gelado dos Andes, envolto de vulcões e de minas de enxofre que liberam continuamente turbilhões de vapor. Ou ainda a «Trilha Inca», essa obra gigantesca, com largura de sete metros, feita de bloco de pórfiro trapeano marrom preto, que cobre as quatrocentas léguas entre Quito e Cuzco a uma altitude de 3391 metros. E, para finalizar, Vera Cruz: «É assim que, em poucas horas, nesse país maravilhoso, o físico percorre toda a escala de vegetação, desde a helicônia e da bananeira - cujas folhas lustrosas se desenvolvem em dimensões extraordinárias - até o parênquima estreito das árvores resinosas»
Tendo retornado à Europa, Humboldt vai tornar Paris, entre 1804 e 1827, sua residência principal. Continuando a mover-se (em Roma, em Nápoles, em Viena ...), preenchendo, a distância, até 1827, ano em que o rei o chama em Berlim, as funções de camareiro da Prússia (ele é nomeado para esse cargo em 1805), participando dos trabalhos do Instituto da França e da Sociedade de geografia de Paris, entretendo correspondência volumosa com especialistas do mundo inteiro e se dedicando à publicação de sua viagem americana. Os trinta volumes se dividem do seguinte modo:
Vol. 1 e 2 |
Plantas equinociais. |
Vol. 3 e 4 |
Monografia dos melastomaceae. |
Vol. 5 |
Monografia das mimosas e outras plantas leguminosas. |
Vol. 6 e 7 |
Revisão das gramíneas. |
Vol. 8 a 14 |
Nova genera e espécies plantarum. |
Vol. 15 e 16 |
Atlas pitoresco da viagem. |
Vol. 17 |
Atlas geográfico e físico. |
Vol. 18 |
Examem crítico da história e da geografia do Novo Continente. |
Vol. 19 |
Atlas geográfico e físico do reino da Nova Espanha. |
Vol. 20 |
Geografia das plantas equinociais. |
Vol. 21 e 22 |
Coleção de observações astronômicas, de operações trigonométricas e de medidas barométricas. |
Vol. 23 e 24 |
Coleção de observações de zoologia e de anatomia comparada feitas no oceano Atlântico, no interior do Novo Continente e no Mar do Sul. |
Vol. 25 e 26 |
Ensaio político sobre o reino da Nova Espanha. |
Vol. 27 |
Ensaio sobre a geografia das plantas. |
Vol. 28 a 30 |
Relação histórica da Viagem. |
Se somarmos a essas cerca de quinze mil páginas, escritas em francês e em latim, originárias de sua viagem americana, os Quadros da natureza (Ansichten der Natur), escritos em alemão (1808), e o Cosmos (Kosmos, Entwurf einer physischen Weltbeschreibung – esboço de uma descrição do mundo), publicado em cinco volumes entre 1845 e 1862 - para não falar de outros textos, como sua Viagem à Ásia Central (1843), que fazem apenas confirmar alguns de seus pontos de vista sobre «a construção do mundo» -, nós temos um enorme corpus sobre o qual refletir.
François Arago, astrônomo e físico, um dos principais amigos e interlocutores de Humboldt em Paris, lhe dizia sobre seus escritos: «Você não sabe construir; seus livros são como pinturas sem molduras». Isso é absolutamente verdadeiro. Mas, não nos colocaremos contra Humboldt, não consideramos essa característica como defeito. É nisso que consiste o interesse da obra humboldtiana: ela não se permite facilmente ser emoldurada. Isso é verdade em um nível puramente composicional: quando ele se coloca para escrever um ensaio de quinze páginas, ele o acompanha de cento e cinquenta páginas de notas (quem declara que isso é «acadêmico» está completamente ao lado da questão). Mas, é verdade também em nível conceitual.
Humboldt é geográfo, mas a sua obra está fora do âmbito de certa concepção francesa da geografia. Em matéria de geografia, a França se distingiu muito ao longo dos séculos XVII e XVIII. Penso especialmente na fundação, durante o reinado de Luis XIV, em 1666, da Academia das Ciências, cuja missão era determinar a extensão da terra e fixar a sua forma. Nela brilhou Picard, que fundou o Observatório de Paris. Pode-se pensar ainda nas cartas da China, elaboradas pelos missionários jesuítas, nas observações feitas em Caiena (1671-1673) pelo astrônomo Richer, que é o primeiro a constatar que a terra não é uma esfera, mas um esferóide achatado com dois polos. Pode-se pensar em dois outros grandes nomes da geografia francesa: La Condamine, Maupertuis, Nicolas Sanson, Guillaume Delisle, d’Anville... Mas, assim que se chega a Sébastien de Beaulieu, primeiro engenheiro do rei, brigadeiro, o slogan «a geografia serve para fazer guerra» vem ao espírito - é nesse contexto que ele encontra a sua aplicação. A geografia serve para fazer a guerra (as operações militares têm necesidade de mapas) e para caçar (penso aqui na «carta dos caçadores do Rei» feita por Berthier entre 1764 e 1773). Certamente, no século XVIll, a geografia francesa mantém a sua reputação, com monografias cartográficas como as dos Pirineus por Roussel, como a dos Alpes por Raymond ou como a das costas marítimas da França por Lerouge, e com toda a série dos «Netuno»: O Netuno francês de Sauveur, o Netuno oriental de Mannevillette, o Netuno americano-setentrional de Bonne, o Netuno Kattegat e o do Báltico de Brache, que data de 1809. Mas, geograficamente, o século XIX não é mais francês. O último monumento é provavelmente o Resumo de Geografia Universal de Maltebrun (1810). A partir dessa data, os grandes estudos geográficos desaparecem na França, até mesmo os estudos de curta duração: subsiste uma única cadeira de geografia, na Sorbone, que se limita ao estudo da geografia antiga (Homero, Herodoto...). Certamente, há a Sociedade de Geografia, mas ela tem poucos membros. É a Alemanha que assume o controle, com o enorme volume de trabalho de Karl Ritter, a começar por Erdkunde (Conhecimento da terra) de 1817: «A geografia em suas relações com a natureza e a história do homem ou a geografia universal comparada, considerada a base do ensino das ciências físicas e históricas». Ritter morre no momento da saída de seu décimo sétimo volume (na Asia), deixando memórias «para servirem como base de um modo mais científico para estudar geografia».
Com Ritter, nós passamos da geopolítica para a geognose e para a geografia humana.
Tão apaixonado pela cultura francesa, Humboldt pertence àquela linha. Mas, ele tem suas próprias características, seus próprios impulsos, que o levam a ser ainda outra coisa.
Falemos inicialmente sobre seu método. Ele escreveu no início de sua viagem: «Golpeados, ao mesmo tempo, por um grande número de objetos, nós experimentamos algum incomodo ao sujeitar-nos a um curso regular de estudos e de observações». A multiplicidade do real e a excitação do espírito tornam difícil a adaptação a uma disciplina habitual. Dito isto, ao longo de seu percurso, Humboldt acumula medições e cálculos – por exemplo, é a primeira vez que ele vê o oceano Pacífico, que ele esquece o seu barômetro. Mas, ele não esquece o sentido de abertura e a sensação do desmedido dessa experiência. Ele quer evitar «sonhos sistemáticos» e «teorias abstratas». Empirista, ele não se contenta com um simples acúmulo de fatos; teórico, ele desconfia das ideias elaboradas muito rapidamente. «Eu me propus, escreve, [... ] a manter um equilíbrio entre duas vertentes seguidas pelos estudiosos... Alguns, ao se entregarem a hipóteses brilhantes, mais fundadas sobre bases pouco sólidas, tiraram resultados generosos de um pequeno número de fatos isolados... Outros cientistas acumularam materiais sem levantar nenhuma ideia geral, técnica estéril na história dos povos como nos vários ramos das ciências físicas». Metodologicamente, ele fica no «meio termo» entre duas estradas. Mas, esse «meio» pede alguma coisa ainda mais complexa. Pensando de outro modo, ele dirá que o trabalho consiste em «coletar, observar, verificar e combinar ». Ainda sob outro ponto de vista, ele dirá que se trata de «capturar os elementos diversos de uma vasta paisagem». Eu diria, com prazer, que Humboldt sabe praticar a extravagância sem se perder, e que ele sabe praticar o rigor sem se fixar.
Falemos agora do campo. O campo de Humboldt é a América: «Se a América não ocupa um lugar distinto na história do gênero humano e das antigas revoluções que a distinguiram, ele oferece um campo tão mais vasto aos trabalhos do físico. Em nenhum outro lugar, a Natureza não o convoca mais rapidamente a elevar-se a ideias gerais sobre a causa dos fenômenos e sobre seu encadeamento mútuo». Nesse campo americano, ao menos naquele momento, a política, preocupada com prioridades e utilidade imediata, estava menos presente e as disciplinas eram menos estanques umas das outras: uma liberdade de movimento se aliava à necessidade de ser multidiciplinar. Humboldt é americanista, em sentido amplo, por assim dizer, da palavra. Ele se assemelha a esse Samuel Hearne - inicialmente aspirante da Marinha Real britânica; em seguida, agente da Companhia da Baía de Hudson - que ia seguir o rio da Mina-de-cobre até o mar Glacial (La Pérouse, ao ter tomado posse dos estabelecimentos britânicos durante a guerra americana, tinha encontrado seu manuscrito – e lhe entregou, com a condição de que ele o publicasse, o que foi feito em 1795). Pode-se evocar ainda nesse contexto o personagem de Alexander Mackenzie, agente da North-West Fur Company que vai inicialmente para o mar Glacial e, em seguida, para o Pacífico. Pode-se pensar em Lewis e Clark que sobem o Missouri e atravessam as Rochosas. Tem Zebulon Pike, que explora as fontes do Mississippi, a bacia do Arkansas, o Novo México e Texas. Ao Major Long, a Nicollet, a Dufflot de Mofras, a Fremont ... Humboldt estava ciente de todos esses trabalhos no Norte. E ele estava ciente também do que tinha acontecido no Sul, desde as descrições da Patatgônia do pai Falkner até as viagens de Lima ao Paraguai de Weddell, passando pelas expedições de Dom Felix de Azara no Rio da Prata, a do Dr. Martins no Brasil, a de Walter Bates na Amazônia, a de Fitzroy no estreito de Magellan, a de Basil Hall no Chile, a de Pentland na Bolívia, a de Alcide d’Orbigny nos Andes, a de Schomburgk na bacia do Orinoco... Ele tem todo o espaço americano, todas as pesquisas americanistas na cabeça. E segue suas pistas americanas não apenas com um espírito de investigação, não apenas com curiosidade, mas com prazer: «O prazer que se experimenta, escreve, não é devido apenas ao interessse que leva o naturalista aos objetos de seu estudo, ele tem como causa um senso comum a todos os homens que são educados em seus hábitos da civilização. Vê-se em contato com um mundo novo, com uma natureza selvagem e indomável. Às vezes, é o jaguar, bela pantera da América, que aparece sobre a costa; outras vezes, é o mitu com plumagem preta e cabeça notável, que passeia ao longo do Sauso. Os animais de classes mais diferenciadas se sucedem uns sobre os outros. Es como en el Paraiso, dizia nosso piloto, velho índio das missões». Humboldt compartilha essa sensação celestial, não caindo sobre uma mitologia fácil - seja ela a da Idade de Ouro ou a do Bom Selvagem. As coisas são complicadas, e não sem contradições. Ao longo de suas peregrinações nas terras selvagens, Humboldt chega a imaginar armazéns, centros de civilização. Mas, desde o fim de sua viagem, logo, desde todo o início do século XIX, ele constata o desaparecimento de palmeiras e de bambus ao redor de Havana e observa com amargura que «a civilização avança». Aqui também haveria um método, a estrada do «meio» para encontrar.
Mas, se Humboldt é americanista, se ele nada em toda essa corrente americana, é um momento da história americana e americanista que ele afeiçoa muito particularmente; é o momento da primeira descoberta e de suas sequências imediatas o que eu gostaria de chamar de o momento colombiano.
«Em nenhuma outra época desde a fundação das sociedades, escreve, o círculo das ideias, no tocante ao mundo externo e às relações do espaço, foi tão repentinamente ampliado e de modo tão maravilhoso». Esse «círculo de ideias» compreendia, entre outros, a composição da atmosfera e suas relações com a organização humana, com a distribuição dos climas na inclinação das cordilheiras, com as leis do magnetismo, com a ligação dos vulcões entre eles, com a insurreição e sucessão das cadeias de montanhas, com a direção das correntes pelágicas...Mas, ele insiste nesse ponto, não havia apenas «ciências», havia como um sentido novo, havia um charme. O «novo trabalho dos espíritos» ia se ampliando, de círculo concêntrico em círculo concêntrico. Ele retoma essa ampliação do círculo, do saber a um tipo de horizonte do saber, uma espécie de aure do saber, na passagem a seguir: «Nas épocas heroicas de sua história, os portugueses e os castelhanos não foram apenas guiados pela sede do ouro, como se supôs, por não compreender o espírito desses tempos. Todo mundo se sentia levado em direção aos acasos das expedições distantes. Os nomes Haiti, Cubagua, Darien tinham seduzido as imaginações no começo do século XVI, como desde as viagens de Anton e de Cook, os nomes de Tinian e de Otahiti... Mais tarde, quando os hábitos se tornaram mais polidos e que todas as partes do mundo se abriram ao mesmo tempo, essa curiosidade inquieta foi mantida por outras causas e tomou nova direção. Os espíritos se inflamaram de um amor apaixonado pela natureza... As vistas se elevaram ao mesmo tempo que crescia o círculo da observação científica. A tendência sentimental e poética, que se encontrava já ao fundo dos corações, tomou forma mais pausada com o fim do século XVI e fez surgir novas obras literárias desconhecidas dos tempos anteriores». Mas tudo o que eu acabo de evocar se concentra aos olhos de Humboldt na própria figura de Cristóvão Colombo. Ainda que desprovido de saber científico preciso, mas pelo seu simples senso de observação, especialmente, Colombo tinha contribuído para os avanços científicos, especialmente no que concerne ao magnetismo terrestre, à flexão das faixas isotérmicas e à botânica, por exemplo, nessa carta escrita do Haiti em outubro de 1498, citada por Humboldt: «Cada vez que, ao deixar a costa da Espanha, eu me dirigo para a Índia, sinto, desde que fiz cem milhas marinhas a oeste de Açores, uma mudança extraordinária no movimento dos corpos celestes, na temperatura do ar e no estado do mar. Ao observar essas mudanças com atenção escrupulosa, reconheci que uma agulha imantada, cuja inclinação tinha ocorrido até ai em direção ao nordeste, passava a noroeste; e após ter ultrapassado essa linha, como se escala a parte detrás de uma colina, encontrei o mar aberto com tamanha quantidade de ervas marinhas, similares a pequenos galhos de pinhos e carregando como frutas pistaches, que os vasos pareciam não ter água e rachar com o fundo baixo. Antes do limite sobre o qual acabo de falar, nós não tínhamos encontrado nenhum traço dessas ervas marinhas. Observei também, ao chegar a essa linha de demarcação, colocada, repito, a cem milhas do oeste de Açores, que o mar se apazigua subitamente, e que quase nenhum vento não o agita mais. Quando descemos das ilhas Canárias até o paralelo da Serra Leoa, foi necessário que sofressêmos um calor terrível; mas desde que nós tivemos que superar o limite que eu indiquei, o clima mudou, o ar se tornou ameno e o frescor aumentou à medida que avançávamos para o oeste». Mas não é ainda isso que mais interessa a Humboldt e Colombo. Era, nas cartas e no diário marítimo, o «profundo sentimento da natureza» que animava o grande viajante, assim como «a nobreza e a simplicidade de expressão» com as quais ele descreveu «a vida da terra, e o céu, desconhecido até aqui, que se descobria seus olhares (viage nuevo al nuevo ciel i mundo que fasta entonces estaba en oculto)». Humboldt retoma esse aspecto mais «sensível», mais «poético» na passagem a seguir: «Nós aprendemos aqui, pelo diário de um homem desprovido de qualquer cultura literária, qual potência podem exercer sobre uma alma sensível às belezas características da natureza. A emoção enobrece a linguagem. Os escritos do almirante, sobretudo, quando já com seus sessenta e sete anos, ele finaliza sua quarta viagem e conta sua visão maravilhosa da costa Veragua, são senão mais punidas ao menos mais cativantes do que o romance pastoral de Bocage, as duas Arcadias de Sannasar e de Sidney, o Salicio y Nemoroso de Garcilasso ou a Diana de Jorge de Montemayor». Nós temos aqui as primícias de uma literatura geopoética.
Quando Humboldt retorna de sua viagem americana, é uma poética desse tipo que ele tem na cabeça e, para ele, é para a elaboração e para a propagação dessa poética que deveriam se aplicar os espíritos. Trata-se de finalização de um desses «grandes pensamentos cuja fonte está nas profundezas da alma». Após a viagem física, logo com seus resultados, a viagem mental com sua rede.
Qualquer obra de amplitude requer recursos ilimitados e algo como uma eternidade. Humboldt tinha gastado metade de sua fortuna para a sua viagem, ele ia gastar a outra metade na publicação dos «atos» dessa viagem. Sente-se que ele inveja um pouco o grande botânico colombiano Don José Celestino Mutis, que tinha sido amigo de Linné, e a quem o rei pagava para seus trabalhos dez mil piastras por ano – tanto mais do que no momento em que Humboldt o reencontrou, Mutis tinha, há quinze anos, cerca de trinta pintores à sua disposição. Mas Humboldt é muito mais do que um grande botânico, e sua pesquisa profunda era menos visível, menos perceptível, menos concebível – alguns poderiam mesmo ter dito «não científico». Certamente, ele contribuiu grandemente para a botânica: de sua viagem, ele tinha trazido cinquenta e oito mil espécies de plantas, das quais três mil e seiscentos desconhecidas. Com essas medidas astronômicas e trigonométricas, ele tinha contribuído grandemente à geodésia, como a outros ramos da ciência. Com a sua geografia das plantas (em vários pontos de sua viagem, ele esboça o quadro dos estágios de vegetação), ele está na origem do que se chama geografia tridimensional. E ele nunca ia parar de interessar-se por todos os aspectos da pesquisa científica, «seja em se tratando (cito) de eletromagnetismo, da polarização da luz, dos efeitos produzidos pelas substâncias diatérmicas ou fenômenos fisiológicos que apresentam os organismos vivos – vasto conjunto das maravilhas que se desenvolvem aos nossos olhos como um novo mundo, do qual tocamos apenas o limiar!» Mas é outra coisa ainda que o chama a atenção, que o inspira. Brincando um pouco com as palavras, poderíamos dizer que ele se interessa por uma geografia quadrimensional. Digamos que ele quer acrescentar uma dimensão a mais à geografia, à ciência, ao conhecimento. E essa dimensão é mais do que uma dimesão «humanista», como na geografia dita humana. Ao longo de sua viagem, Humboldt tinha se dado conta de uma dimensão da existência em que uma consciência humana está certamente presente, mas em que a imagem do homem à qual estamos, filosoficamente e psicologicamente, acostumados não tem mais razão de ser: «Nesse interior das terras do novo continente, acostuma-se quase a olhar o homem como não sendo de jeito nenhum essencial à ordem da natureza». Uma simplicidade do homem, um ser menos imposto e imponente estaria na ordem do dia... Não é, certamente, fácil encontrar um conceito global adequado. De modo geral, nosso vocabulário conceitual deixa muito a desejar. Se a etnografia pretende ser unicamente coletora e descritiva, a etnologia se permite, a partir de materiais etnográficos, elaborar teorias. Por analogia, se a geografia é a descrição da terra, a geologia deveria significar «teoria da terra», mas ele não fez nada – lidamos apenas com um aspecto especial e especialista da geografia. Humboldt, como constatamos, utiliza muito frequentemente o termo «geognose», mas aqui também o sentido é muito específico – trata-se da configuração da terra, não a configuração de nova mentalidade geral das coisas. Ao longo de sua viagem, Humboldt tinha sido abordado por pessoas munidas de ondas e confusas noções de astronomia e de física que queriam falar sobre « nova filosofia » - ele achava isso absurdo, como ele teria encontrado absurdos em tantas outras «novidades». Por razões que eu já evoquei, e por outras que vão emergir do que vai acontecer, penso que o termo mais adequado seja «geopoética». A obra de Humboldt constitui uma abordagem, e uma das mais interessantes, do que se pode chamar de «geopoética» hoje.
Em dois textos, ele torna isso, ainda que muito precisamente, a genealogia. O primeiro se intitula História da contemplação física do universo; o segundo, Descrições poéticas da natureza.
Na primeira abordagem, a História da contemplação física do universo poderia assimilar-se apenas a uma história abreviada das ciências. Mas, as ciências separadas podem fornecer apenas materiais para o fundamento do que Humboldt denomina «a ciência do cosmo» ou ainda «o desenvolvimento da ideia de cosmos» ou ainda, citando Otfried Müller, a elaboração da «ideia poética da terra».
Para a proposta geral, ele cita seu irmão Wilhelm von Humboldt: «Pode parecer estranho querer aliar a poesia, que encontra seu prazer na verdade, na forma e na cor, às ideias mais simples e mais abstrusas. Mas, isso se justifica inteiramente. A poesia, a ciência, a filosofia e a história não estão essencialmente separadas umas das outras. Elas estão unidas quando certa etapa do progresso humano situa o homem em um estado unitário ou ainda quando uma inspiração autenticamente poética projeta o indivíduo em tal estado». Humboldt se lança então em seu histórico, tendo o cuidado de precisar que ele irá rapidamente, que não se trata de perder-se nos detalhes, mas de ver as linhas de crista, de desenhar uma configuração (certas épocas, certas obras podem ter apenas uma linha interessante, é ela que precisa ser liberada, combinando-a com outras retiradas de outros contextos).
Em a História da contemplação física do universo, Humboldt distingue, no Ocidente, sete épocas, sete áreas: 1ª) o Mediterrâneo; 2ª) a Madecônia sob Alexandre o Grande; 3ª) o Egito dos Ptolemeus; 4ª) o Império romano; 5ª) a Arábia; 6ª) as grandes descobertas oceânicas; 7ª) as descobertas celestes. Graças ao espírito «pleno de vitalidade e móvel» dos gregos, o Mediterrâneo tinha conhecido «uma ampliação rápida do círculo das ideias». Mas, não havia apenas os gregos, havia os fenícios com suas viagens e seu alfabeto, os etruscos, com seu «gosto para cultivar relações intímas com os fenômenos naturais». Aliavam-se então com expansão em direção ao mundo externo e aumento da visão contemplativa... Com Alexandre, «o novo campo a ser considerado» assumia ainda outras proporções: materiais exigiam novas coordenações, uma nova compreensão intelectual - busca empírica encontrando alta especulação, o todo tentando encontrar a sua linguagem. Se, no Egito, a escola de Alexandria desejava fortemente isolar-se na pura erudição, faltando assim «espírito animado», existiu, contudo, Eratosteno, que tinha «visão intelectual». Em Roma também, no que diz respeito à «formação de concepções superiores», há uma falta, mas Strabon - aquele que, após ter escrito quarenta e três livros de história, pôs-se à sua obra geográfica aos oitenta e três anos - tinha bom conhecimento do Império, desde a Armênia até a costa tirrena, desde o Mar Negro até as bordas da África; e Pline (Plinius Secundus) sentia que ele caminhava sobre trilhas nunca antes percorridas («non trita autoribus via»). Pena que ele tenha se perdido nos detalhes de especialistas, em vez de guardar na mente uma «imagem única» potencial. Para os árabes, o interesse de Humboldt está focado nas tribos nômades, que conheciam «a face aberta da natureza» e que têm «uma sensação mais fresca das coisas», o que não foi possível nas cidades gregas e romanas. Para os viajantes e geográfos árabes, ele constata uma sensação e um conhecimento do espaço ainda maiores do que para Marco Polo ou para os monges budistas. Ele evoca El-Istachri e seu Livro das regiões do mundo, Ibn Sinâ (Avicenne), o botânico Ibn Baithar ee Ibn Ruschd (Averroés), que souberam seguir «os caminhos solitários do desenvolvimento das ideias ». Em seguinda, ele se inclina sobre as grandes cosmografias que, ao aumentarem a visão das coisas, abriram a via às descobertas oceânicas: o Liber cosmophicus de natura locorum de Albertus Magnus, o Fenix de las maravillas del Orbe de Raymond Lulle, o Imago Mundi de Pierre d’Ailly, muito lido por Colombo, sem esquecer o Opus Maius de Roger Bacon. Desfilam então, diante de nossos olhos, Plan Carpin, Sir John Mandeville, Balduccio Pegolotti, Ruy Gonzalez de Clavijo e o próprio Colombo sempre munido do livro de Piere d’Ailly assim como da la carta de marear que lhe tinha enviado Toscanelli de Florence, seguido de Magellan, de Balboa, de Cortez, de Léonard de Vinci, cujas ideis mais interessantes permaneceram muito tempo em seus manuscritos (e.g. o Codex Atlanticus), e Dante, que tinha visto cartas celestes árabes e falado com viajantes no Oriente - e que sabia aliar erudição, errância intelectual e inspiração... E chega-se com isso à sétima época, a da abertura do espaço astronômico graças ao telescópio, onde encontramos as figuras de Leonhard Euler de Copérnico (De revolutionibus orbium caelestium), de Kepler, de Huygens, de Herschel e de Galileu.
Humboldt insiste no fato de que esse estudo, escrito de modo «fragmentário e geral» não visa nem a ser perfeito nem a ser completo. É muito precisamente um esboço. Mas, ele teria estado pronto para reconhecer que mesmo enquanto esboço, ela pode deixar a desejar, de um ponto de vista que não seja nem o da perfeição nem o da exaustividade. Por exemplo, ele não chega a manter-se sobre a linha de crista que ele tinha proposto a si mesmo – ele vai falar sobre a polarização da luz estudada por Arago, enquanto isso pertence à «ciência especial», e não à «ciência do cosmo». E ele tem problemas de composição. De fato, como veremos, um dos questionamentos que, cada vez mais, Humboldt faz a si mesmo, é o de uma poética – não uma poética da perfeição, mas uma poética da peregrinação: informada, inteligente, animada, prazerosa, iluminada e inspiradora. O essencial é que em seu estudo fragmentário sobre a «contemplação física do universo» se encontram algumas dessas pistas que ele desenha, essas pistas do pensamento que um dia levarão a uma «imagem» - isto é, à uma grande visão poética do mundo. A enfâse na abertura, no avanço. «Os espíritos fracos, escreve, estão sempre prontos, em todas as épocas, para declarar com complacência que a humanidadae atingiu o ápice do progresso intelectual» - ou, acrescentemos, ao pensar na época atual, para declarar que tudo está terminado. Mas, de fato, o campo a ser explorado se torna cada vez mais vasto, o horizonte recua sempre: «existem forças, operando ainda silenciosamente na natureza elementar, como nas delicadas células dos tecidos orgânicos, dos quais nós ainda não estamos conscientes - mas que, um dia, entrarão no campo do conhecimento». Será necessário ainda muito tempo, muitas observações, muitas combinações e muita comunicação. Em suma, para os que são conscientes, o campo se amplia e se aprofunda todos os dias. Eis a última palavra de Humboldt sobre a «contemplação física».
Permanece a questão da expressão, que não é uma questão secundária, mas uma questão primordial, pois o ser do homem tem necessidade de se expressar – mas que homem, que ser, que expressão? É à «genealogia da expressão poética» satisfatória, iluminada que se detém Humboldt no outro estudo fundador: Descrições poéticas da natureza. E assim como no estudo sobre a «contemplação física», ele não escrevia a história das ciências, aqui Humboldt não escreve a história da literatura, mas elabora, graças a algumas incursões perspicazes e perspectivistas no corpus da literatura mundial, a geografia da potência poética, isto é, da relação mais profunda entre o homem e... a natureza (nenhuma palavra aqui é satisfatória). As palavras de Humboldt, como já pudemos constatar, são as de sua época. Humboldt é um cientista, um intelectual, que tem «visão», «premonição» da poesia das quais é incapaz a maioria daqueles que são denominados ou que se autodenominam «poetas». Estamos no paradoxo, o paradoxo excitante – é o que substitui vantajosamente o paraíso. Humboldt vai então utlizar as palavras «sentimental» (que lhe vem de Schiller, cujo texto A Educação estética da humanidade não é estranha a todo esse contexto), «romântico», «pitoresca» - mas seu lançamento ultrapassa sua linguagem. Sua exploração da literatura poética desde os gregos e romanos até os «viajantes modernos» quer abrir um espaço de possibilidades extraordinárias – mais uma vez, trata-se de notar, de comparar, de combinar, de compor: geografia multidimensional do verbo...
Para Humboldt, na literatura grega clássica, a ênfase é colocada exclusivamente sobre o humano: paixão e política, a natureza servindo apenas de pano de fundo ou como repertório de comparações. Mesmo quando se trata mais especificamente da natureza, a abordagem é descritiva, didática e há pouca «contemplação inspirada». Mas, existem algumas exceções a essa regra, dentre as quais as Dionysiaca de Nonnos de Panopolis. Quanto aos romanos, seu espírito é legista, militar ou doméstico, e sua língua tem menos «mobilidade ideal» do que o grego; porém Lucrécia se distingue por seu «gênio fértil», e encontramos uma presença da natureza em Virgílio, Horácio, Tibulo, Ovídio, sem esquecer «a bela descrição de uma floresta druida». Para Lucain, o que leva Humboldt a observar, quando ele passa, que entre as antigas tribos germânicas e celtas, constata-se verdadeira «veneração da natureza», expressa por «rudes símbolos». Para os poetas hebreus, a natureza é a expressão viva da onipresença de Deus, e seu interesse está menos focado nos fenômenos isolados do que nas «grandes massas». Como negar a grandeza do Salmo 104: «As árvores do Senhor estão plenas de seiva, os cedros do Líbano que ele plantou... ou ainda o livro de Jó: «O Senhor caminha sobre as alturas do mar, sobre o topo das ondas amontoadas pela tempestade» - dizendo talvez a si próprio que, nesse espetáculo divino, Deus ocupe um pouco demais a cena. Para Humboldt, o cristianismo tinha liberado o olho contemplativo o desviando dos deuses, de modo que a natureza tomasse o seu valor – criação e expressão de Deus, certamente, como na poesia hebraica, mas de modo menos teocraticamente imponente. Ele cita como um de seus textos preferidos uma carta de Basílio, um grego de Capadócia, ermita cristão nas margens do Íris na Armênia: «Falarei para você sobre o belo canto dos pássaros e sobre a profusão de flores? O que me mais me encanta é a tranquilidade absoluta da região...» Há nessa carta, diz Humboldt, sentimentos e sensações mais próximas daqueles da época moderna como tudo o que se pode encontrar entre os gregos ou entre os romanos. Mas o cristianismo ia desviar-se cada vez mais da natureza, vendo nela o diabo, e de todo estudo da natureza, vendo nisso bruxaria... Na Ásia, a aurora e o sol resplandeciam no Rig-Veda, símbolos de uma região cósmicas dos quais encontramos elementos na mitologia popular, por exemplo, a vida de Râma na floresta ou ainda na poesia de Kâlidâsa que, no Meghaduta, descreve a passagem de uma nuvem assim como as paisagens que ela atravessa. Para os persas (Firdûsî, Hâfiz, Saadi, AI Rûmî), a grande natureza está menos presente, o interesse deles estando focado nas paisagens dispostas (jardins, fontes...) e em outros artifícios de forma.
Os árabes gostam de cantar a guerra e o amor, mas há também a vida do deserto, tal como a encontramos no romance beduíno Antar. Após essa volta ao mundo antigo, Humboldt, sempre em busca de elementos de uma «poesia da natureza» satisfeita, volta-se para o mundo moderno, a começar por Dante Alighieri, «o fundador inspirado do novo mundo», cuja potência referencial e intelectual tem apenas sua sensibilidade a impressões imediatas, como «il tremolar della marina». Sinal dos tempos também, a ascensão do monte Ventoux por Petrarca que, infelizmente, permanece enredado na alegoria e na moral. Bembo, por outro lado, em seu Aetnae Dialogus, produz um quadro animado da geografia das plantas sobre o vulcão, desde os campos de trigo da Sicília até as margens com neve da cratera. E, depois, repetidamente, Colombo, que descreve a terra nova com suas árvores e seus frutos e suas lindas aguas, sentindo que «mil línguas não seriam suficientes para dizê-la: « Para hacer relacion a los Reyes de las cosas que vian, no bastaran mil lenguas a referillo, ni la mano para la escribir, que le parecia questaba encantado». E Camões em Macao, levado pelo mar, pelo vento e pelas nuvens, marinheiro da alma, cantor da glória portuguesa que, contudo, fala mais de especiarias com valor comercial do que de outras plantas tropicais... Passamos então por Shakespeare, sensível «à expressão individual da natureza», e por Milton, sublime, mas cujas descrições são mais magnificas do que gráficas, para chegar ao século XVIII, na época dos Buffon, Rousseau, Bernardin de Saint-Pierre, Chateaubriand, a toda uma nova série de tentativas para aproximar-se da natureza e para falar sobre esse campo de encontro de modo, ao mesmo tempo, exato e inspirador. Buffon acumula os fatos exatos, mas suas frases são construídas muito artificialmente e não se sente nele essa «analogia misteriosa entre os movimentos do espírito e os fenômenos percebidos pelos sentidos», que é o assunto das pesquisas de Humboldt nesse último estágio de suas peregrinações. Para Rousseau, o eu está frequentemente muito presente; para Chateaubriand, poderíamos também dizer ... ele, cujas passagens pela terra se acompanham sempre de lembranças históricas. Quanto a Bernardin de Saint-Pierre, Humboldt o leu muito, com delícias, mas suas teorias são geralmente muito bizarras. No fundo, desde que a questão da natureza é abordada na época moderna, é dificil sair do pastoral, do elegíaco, do idílico, do didático, do excessivamente sentimental etc. A gente não para de escrever, de modo elevado, que a pobreza de materiais e da informação de base é por demais evidente – daí, aliás, surgem tentativas de compensação pelo estilo. No passado, nos antigos livros de viagens, por exemplo, a pobreza dos materiais era compensada pela inocência, por uma faculdade de maravilhamento infantil ou ainda pela dramatização, uma coloração épica. Mas nada disso tudo é possível hoje, é necessário encontrar outra coisa. Nós estamos lidando com uma massa de informações que se trata ou não de ordenar, mas à qual é preciso também dar uma áurea, uma luz. Seria possível chegar a «uma espécie de delícia intelectual» que os antigos não podiam conhecer – mas, que literatura está verdadeiramente à altura? Pode-se coletar elementos aqui e acolá, mas se espera sempre «ampliação do campo da arte», espera-se sempre uma poética que saiba «apresentar à contemplação do intelecto e da imaginação a rica matéria do saber moderno». Não pode ser causa de vagas analogias, de metáforas ocas, de mitos simbolistas, trata-se de definição e de respiração, de exatitude e de extâse, de sensorialidade e de inteligência, e de uma escrita que seja outra coisa que «estilo» ou eu não sei qual «prosa poética» rebuscada.
Ao longo de sua obra, desde as primeiras notas tomadas nos llanos, ou na floresta tropical úmida, ou as margens do Orinoco, até as redações e as composições de Paris e de Berlim, Humboldt tentou aproximar-se dessa literatura mais do que «da literatura» que ele via aparecer no horizonte. Pode-se dizer que essa obra consiste em relações, em estudos e em ensaios poéticos. Esses «ensaios poéticos» podem ser encontrados nas relações e nos estudos dos quais já citei alguns exemplos, mas Humboldt consagrou um livro específico para isso, os Ansichten der Natur, traduzido em francês como Vistas da natureza e em inglês como Views of Nature. Não há nada a ser censurado nessas duas traduções. Vale, contudo, a pena observar que, em uma carta endereçada a seu editor londrino, o próprio Humboldt escreve «views into nature». Pode-se imputar isso à insuficiência de seu inglês, pode-se também ver nisso uma nuance interessante.
Trata-se, em seus Ansichten, de tentativas de «quadros integrados», onde se leria «a cooperação das forças» da natureza, em uma prosa que se pretende ao mesmo tempo vigorosa e flexível, o todo querendo introduzir ao mesmo tempo a imaginação, aumentar o conhecimento das coisas (configurações escondidas e relações plásticas profundas) e enriquecer a vida pela apresentação de novas ideias. Com uma pequena fábula, «A força vital ou o gênio rodiano», que não tem provavelmente verdadeiramente seu lugar (mas Humboldt tem dificuldades em «conseguir expressar» tudo o que lhe vem à mente), há nesse livro seis ensaios ao todo: «Os estepes e os desertos», «A vida noturna dos animais na floresta primitiva», «Ideias para uma fisionomia das plantas», «Sobre a estrutura e o modo de ação dos vulcões», «O platô de Caxamarca». Dizer que esses ensaios correspondiam completamente a seus votos seria exagerado, digamos simplesmente que é o livro que, ao final das contas, ele mais estimava, em que ele colocou mais dele próprio, no qual registrou a maior parte de suas percepções e o que oferece mais indicações.
Eis aqui ele novamente sobre os llanos, essas «estepes» da Venezuela:
«É pelo Mesa de Paja, a 9° de latitude, que entramos na bacia dos llanos. O sol estava quase no zênite; a terra por onde ela se mostrava estérea e desprovida de vegetação tinha até 48°C e 50°C de temperatura. Não se sentia nenhuma brisa na altura à qual nós nos encontrávamos sobre nossas mulas; contudo, no meio dessa calma aparente, turbilhões de poeira se elevavam sem cessar aprisionados por essas pequenas correntes de ar que tocavam apenas a superfície do solo e que nasciam das diferenças de temperaturas que adquirem a areia nua e os lugares cobertos de grama. Esses ventos de areia aumentam o calor sufocante do ar. Cada grão de quartzo, mais quente do que o ar que o envolve, brilha em todos os sentidos, e é difícil observar a temperatura da atmosfera sem que moléculas de areia venham se chocar contra a bola do termômetro. Tudo à nossa volta, as planícies pareciam mostrar para o céu, e essa vasta e profunda solidão se apresentava aos nossos olhos como um mar coberto de varech ou de algas pélagicas. Segundo a massa desigual dos vapores difundidos na atmosfera e, segundo a queda variável da temperatura das camadas de ar superpostas, o horizonte, em algumas partes, estava claro e nitidamente separado; em outras, ele estava ondulante, sinuoso e estriado. Aqui, a terra se confundia com o céu. Através da bruma seca e dos bancos de vapor, via-se ao longe troncos de palmeiras. Desprovidos de sua folhagem e de seus picos verdejantes, esses troncos pareciam como mastros de navios que se descobre no horizonte.
Há algo importante, mas triste e lúgubre no espetáculo unforme dessas estepes. Tudo ai parece imóvel: apenas algumas vezes a sombra de uma pequena nuvem que percorre o zênite e anuncia a chegada da estação das chuvas se projeta sobre a savana. Eu não sei se não ficamos tão surpresos aos primeiros aspectos dos llanos do que ao da cadeia dos Andes. Os países montanhosos, seja qual for a elevação absoluta dos altos cumes, têm uma fisionomia análoga; mas dificilmente nos habituamos à vista dos llanos da Venezuela e de Casanare, àquela dos pampas de Buenos Aires e a dos chacos que constantemente e, durante a viagem de vinte a trinta dias, lembram a superfície unida do Oceano. Eu tinha visto as planícies ou llanos da Mancha na Espanha e as urzes (ericeta) que se estendem desde a extremidade do Jutland, passando pelo Lunebourg e pela Vestfália, até a Bélgica. Essas últimas são verdadeiras estepes cujo homem, há séculos, pode submeter apenas pequenas porções à cultura; mas as planícies do oeste e do norte da Europa oferecem apenas uma fraca imagem dos imensos llanos da América meridional».
Mas por mais típico que seja, por mais gráfico e protogeopoético (se posso dizer), não é, contudo, com o texto que eu gostaria de terminar o presente ensaio. É o texto da viagem consagrada ao Chimborazo que vou transcrever em versos, porque ele se destina a isso:
É assim que à beira-mar do Sul
após as longas chuvas do inverno
quando a transparência do ar
aumentou subitamente
via-se aparecer o Chimborazo
como uma nuvem ao horizonte
ele se separa dos cumes vizinhos
ele se eleva sobre toda a cadeia dos Andes
como essa cúpula majestuosa
obra do gênio Michelangelo
sobre os monumentos antigos
que circundam o Capitólio...
Humboldt não atingiu o cume do Chimborazo (quer ver aqui um símbolo?), tendo sido tomado antes pela vertigem. Mas eu não vejo muito, na época moderna, espírito que tenha ido mais longe e mais alto, transportando tanta matéria.
E, na nuvem que ele evoca nessas últimas linhas citadas, esconde-se, como um relâmpago, o projeto geopoético.
Kenneth WHITE
(Tradução de Jordélia Mendes Brandão)