Se atravessarmos os jardins de Luxemburgo em Paris, de Montmartre ao Quartier Latin, seguindo a calçada central, um pouco antes de chegar à Bacia de Paris e à grama que se estende diante do Senado, chegaremos à estátua erguida em 1906 pela Sociedade de Economia Social em comemoração ao centenário de nascimento de Pierre Guillaume Frédéric Le Play. Em um dos lados da base, pode-se ler uma lista das funções assumidas por Le Play: curador de exposições universais várias vezes, senador da República. Do outro lado, estão os títulos de suas obras: Os operários europeus, a Reforma social, A Constituição essencial da humanidade ...

Por que parar então na estátua de Le Play? É porque Le Play exerceu grande influência nas ideias e na prática de um biólogo, urbanista, educador e ativista cultural de origem escocesa, Patrick Geddes, cujas ideias e atos constituem, parece-me, uma abordagem a mais do campo e do projeto geopoéticos.

Antes de falar mais precisamente de Geddes, evoquemos a vida, a obra, o pensamento de Le Play.

Frederico Le Play nasceu em 11 de abril de 1806 em um pequeno burgo, Rivière Saint Sauveur, perto de Honfleur, na Normandia. Aluno brilhante no colégio do Havre, ele encontrou muito rapidamente o caminho da Escola Politécnica de Paris. Após ter realizado estudos intensivos de matemática, química e geologia, ele deixou a Escola com a primeira colocação da promoção das Minas. Foi enquanto equatoriano engenheiro das minas que ele percorreu a Bélgica, a Alemanha, a Dinamarca, a Suécia, a Noruega, a Suíça, a Itália, as Províncias danubianas, a Hungria, a Turquia, a Inglaterra, a Espanha, a Rússia - viajando, sempre que possível, a pé e fazendo anotações (geológicas, sociais e econômicas) incessantemente. Em sua primeira viagem, na Alemanha, sobretudo, na região do Harzt, ele percorreu, a pé, seis mil e oitocentos quilômetros - fazendo por vezes oitenta quilômetros por dia, com a velocidade de oito minutos e trinta segundos por quilômetros. Amante da precisão, como acabamos de constatar, ele sabia ainda confrontar situações técnicas e humanas difíceis. Em 1833, ao retornar da Espanha em um cargueiro cujo capitão era louco e cuja tripulação estava permanentemente embriagada, ele assumiu o comando do barco, fez um balanço e levou o navio para o porto. Na Rússia, após estudo aprofundado de terrenos carboníferos situados entre o mar Cáspio e o mar de Azov, ele renovou completamente as técnicas de extração e de preparo locais - explorando, na mesma ocasião, minas de dinheiro, de cobre e de ferro nos Montes Urais. Durante a primeira Exposição Universal, que aconteceu no Cristal Palace em Londres em 1851, ele foi membro do júri para o concurso das ferramentas de aço e de talheres - aproveitando mais uma vez a ocasião para estabelecer relações econômica e social com uma família operária inglesa (incluindo, mais tarde, em seu livro Os Operários europeus). Ele foi curador geral da Segunda Exposição Universal, realizada em Paris em 1856 no Palácio da Indústria, na Avenue Champs-Élysées. Quando a Terceira Exposição Universal aconteceu em Londres em 1862, Le Play foi curador da seção francesa. Em 1867, ele foi o principal organizador da Quarta Exposição Universal, que aconteceu em Paris. Naquela ocasião, ele elaborou um sistema infecioso de vias irradiantes e de zonas concêntricas a fim de dar ao espectador uma visão global da produção mundial: ao longo das vias irradiantes, podia-se ver todos os produtos dessa ou daquela nação - enquanto que as zonas concêntricas permitiam o estudo comparativo de um mesmo produto no mundo inteiro. Essa exposição foi instalada à beira do Sena, entre a ponte Royal e a ponte de Iena. A fim de transportar os visitantes de um ponto a outro, Le Play teve a ideia de organizar um serviço de barcos: esta é a origem dos bateaux-mouches. Ao organizar exposições, ao viajar de um lugar para outro tomando notas incansavelmente, Le Play ensinou a metalurgia na escola das Minas em Paris, antes de ocupar uma cadeira de economia política no Collège de France. Próximo ao final de sua vida, ele morava no número 6, praça Saint-Sulpice, levantava-se todos os dias às seis horas da manhã e trabalhava regularmente de dez a doze horas por dia em uma grande peça que ele mantinha escrupulosamente em uma temperatura compreendida, muito precisamente, entre 14°C e 15°C - e que tinha uma bela vista no local.

Do ponto de vista da geopoética urbana, ou do urbanismo geopoético, pode-se dizer que duas séries de imagens estereotipadas - às quais a realidade superficial corresponde às vezes - cobrem a realidade profunda de Paris: de um lado, as de uma cidade revolucionária e sanguinária; de outro, as do “Gay Paree”. Pode-se esquecer facilmente de que Paris sempre foi um lugar de experiências sociais, políticas e econômicas. Jovem, Le Play assistia com prazer às reuniões de um falanstério saint-simoniano, em Montmartre - costume que lhe valeu uma condenação pela Corte Suprema. Ele corria o risco de ser guilhotinado, mas foi perdoado e exilado nos Estados Unidos. Ele aproveitou esse exílio americano para redigir relatórios sobre a condição social, industrial e econômica dos Estados Unidos, que ele enviou ao Jornal dos Debates. Entusiasta da comunicação intercontinental, ele propôs a construção de canais no Panamá e na Nicarágua. Ele foi ainda o primeiro a falar sobre um túnel sob o canal da Mancha…

Com Le Play, nós lidamos com um espírito livre, preciso e aventuroso, capaz ao mesmo tempo de extravagância - ir rapidamente de uma área à outra, abrir um leque de possibilidades, avançar em conceitos férteis, ampliar os conceitos do mundo - e de exatidão - nem acúmulo de números insignificantes nem “imprecisão”. No plano sociopolítico, se o pensamento utopista o tivesse, por um momento, atraído, ele ia abandonar esses conceitos pesados e fáceis que são Utopia e Revolução (apenas construções inúteis, agitações estéreis e negócios mortais!), sem alimentar qualquer nostalgia por não sei qual antigo regime, sem tampouco atolar-se no statu quo. O que resta então? Digamos: estudos em primeira mão, um método para a terra, uma sociologia experimental, uma arte social aplicada.

Em 1856, Le Play fundou a Sociedade de Economia e de Ciências Sociais, que se transformou rapidamente e se tornou a Sociedade Internacional dos Estudos Práticos de Economia Social. Essa sociedade, fundada sob o estudo do Lugar, do Trabalho e da Família, estava acompanhada de toda uma rede de organismos locais, conhecidos sob o nome de Uniões para a Paz Social. Le Play via nessa sociedade uma escola de progresso social. Onde Auguste Comte elaborava uma classificação histórica das sociedades e onde Durkheim destacava o comportamento social e institucional, Le Play se fixava no indivíduo. Mas, o indivíduo, dizia, existe no seio do grupo. Esses agrupamentos podem ser de diversos tipos: ateliê, associação, província, Estado, seminário - mas a unidade de base para todos é a família. A sociologia leplayana estuda a família e, em particular, a família operária - esta representando para ele a linha de base. Le Play distingue três tipos de famílias: a família patriarcal (reunida sob a autoridade de um pai e entorno dele); a família-tronco (os filhos e as filhas a abandonam e a reencontram - em todos os casos, ela permanece como referência); a família instável (sem herança consistente, desnudada de coerência, informe e agitada). Em termos de método, já que Le Play desconfia das sistematizações teóricas e da estatística e já que ele evita as generalizações precoces, ele se volta para a monografia. Fundada sob a observação direta, sob questionamentos concernentes ao meio ambiente, às crenças, ao ideal de vida, aos modos, ao emprego, às ocupações, ao orçamento, aos meios de expressões etc, a monografia leplayana se esforça para sondar antes de fundar. Ela tem seus limites, mas ela abre um campo de investigação.

Alguns dos discípulos de Le Play iam colocar suas ideias em prática, desenvolvendo, às vezes, ao mesmo tempo, sua tipologia e seu método. É assim que Butel, em sua monografia do Vale de Ossau, se pergunta, tendo novas observações como apoio, se a família pirineia é verdadeiramente uma “família-tronco, como tinha pretendido Le Play. Quanto a Henri de Tourville, que trabalhava segundo uma ideia ainda latente no texto Os operários europeus, ele ia desenvolver a noção de uma formação familiar particularista. Nessa formação, que os rapazes e as moças vão abandonar a fim de encontrar suas vias pessoais, o destaque é sobre a iniciativa individual. Após Le Play e Tourville, Edmond Demolins ia fazer uma distinção entre a formação comunitária(dependência no que diz respeito à comunidade e ao Estado) e a formação particularista (na qual o grupo é secundário em relação ao indivíduo), insistindo no fato de que a formação particularista não significa um individualismo fanático, já que o particularista pode decidir, com autonomia, fundar ou filiar-se a uma associação - com a condição, é claro, que a associação seja fundada sob a dinâmica individual. Com a finalidade de desenvolver e de propagar a ideia particularista, Demoulins fundou em 1899 a Escola das rochas. Enquanto geógrafo, ele tinha tendência em insistir - mas sem fazer disso um determinismo absoluto - na influência que o meio ambiente geográfico pode exercer sobre o desenvolvimento do indivíduo. Sobre essa linha, encontramos estudos acerca desse ou daquele tipo familiar ou regional: por exemplo, O Camponês dos fiordes de Paul Bureau. Outros estudos estavam mais particularmente focados na economia, prevendo o boom de uma economia que não seria nem individualista nem coletivista, mas fiscal - aquela que conhecemos atualmente.

Em uma palavra, a síntese original de Le Play: Lugar, Trabalho, Família”. E, em meio a seu método monográfico, surgia todo um corpo focado na estrutura social, no entorno geográfico e nos sistemas de economia.

É aqui que entra em cena Patrick Geddes.

Aos vinte anos, em 1874, Geddes tinha abandonado sua terra natal, a pequena cidade de Perth, para realizar seus estudos de botânica na universidade de Edimburgo. Uma semana foi suficiente para que ele se desse conta do método de ensino então em voga para essa matéria - “decorar listas de plantas mumificadas”.

Huxley era o homem do  qual ele precisava: sábio, autor, inspirador. Eis alguém que pronunciava conferências públicas sobre temas tão provocantes para a época como “O homem e outros animais”, em que ele zombava abertamente de todos os fundamentalistas, e que escrevia livros nos quais ele abordava questões tão gerais como O lugar do homem na natureza (1863). E Huxley sabia ainda ensinar: Geddes tinha se entediado tanto até aí com o contexto do ensino como hoje ele é entusiasta. Em um ensaio, “Huxley educador” diz que as aulas de Huxley estavam focadas, certamente, na biologia, mas de modo muito amplo e, que de maneira expressiva, ele abria, de fato, perspectivas sobre a “fisiologia geral da natureza - a ecologia”. Quanto ao próprio Geddes, ele se interessava cada vez mais à fronteira entre a planta e o animal, tal como a vemos, por exemplo, nas “células amarelas” dos radiolários. Seus estudos avançavam bem, mas se ele apreciava Huxley, il apreciava nitidamente menos Londres; e, muito cedo, ele tinha anunciado que, chegado o momento, ele iria prosseguir seus estudos “no Continente”. Após ter tentado em vão guardá-lo junto a si, fazendo-o nomear para um cargo na University College de Londres, Huxley tomou a iniciativa, na primavera de 1877, de enviá-lo para Roscoff, na Bretanha, onde o professor Lacaze-Duthiers da Sorbonne tinha fundado uma estação de biologia marinha. Geddes retornou para lá no verão de 1878, a fim de aprofundar suas pesquisas acerca de um certo verme primitivo que pode ser encontrado nas praias bretãs. Ele acompanhou então o professor Lacaze-Duthiers em Paris, onde ele publicou, em francês, sua dissertação: “Sobre a clorofila animal e a fisiologia das plenárias verdes”, seguindo as aulas de Lacaze-Duthiers na Sorbonne, assim como as pesquisas de Wurt e de Gautier na Escola de Medicina.

Na França, de modo geral - e, em Paris, em particular - Geddes era como um peixe na água. Ele adorava elogios.  Em um manuscrito, “Estudante em Paris”, ele escreveu o seguinte:

“A universidade e a cidade eram, cada uma, mais rica em impressões, em experiências e em impulsos do que tudo o que eu tinha conhecido até então []. Havia a energia e a generosidade de Lacaze e dos demais professores. Havia a intensidade sobre-humana de Pasteur. O velho patriarca Chevreul permanece - com noventa anos, ele dirigia sempre o Jardim das Plantas - também extraordinariamente vivo em minha lembrança. Eu nunca poderia expressar, de madeira adequada, o meu reconhecimento []. E que conversas informadas e vivas por toda a parte! Havia, de igual modo, Ernest Renan. Eu assisti apenas a uma de suas conferências, mas ela foi suficiente para me dar uma ideia do que pode ser um espírito potente, diverso e sútil. Foi para mim um momento de total renovação.”

Com muitas reprises, em suas cartas e ao longo de conferências (eu penso particularmente em uma conferência pronunciada em 1910 em Chicago: “A verdadeira França”), Geddes retoma esse tema. Os elementos que ele apreciava, acima de tudo, na cultura francesa eram a vivacidade moral, a vivacidade intelectual e a ética da ação. “O que mais se aprende em Paris?” Bom, que a sua clareza de espírito - que não há igual em outra parte do mundo - e a sua excelência artesanal se desenvolveram seguindo um único preceito: realizar uma boa jornada de trabalho, pois Paris, é preciso dizer, é a mais trabalhadora das grandes cidades”. A partir de seu primeiro contato, Geddes tinha parado de tentar renovar os velhos elos intelectuais e culturais entre a Escócia e a França. Em 1900, rumo à Exposição Universal em Paris, ele conseguiu criar uma “assembleia internacional” - onde figuravam, entre outros, Pasteur e Renan - com a finalidade de reavivar o antigo Colégio dos Escoceses da rua do Cardinal-Lemoine. A partir de 1924, essa ideia de fundar um novo Colégio dos Escoceses se tornava uma obsessão. Ele pode, em determinado momento, adquirir uma casa situada em Assas, a alguns quilômetros de Montpellier, que lhe parecia o lugar ideal para o seu projeto: “Colégio dos Escoceses, cerrado dos Brusses, Montpellier, Hérault, França”. O colégio estaria situado geograficamente entre a estação meteorológica do Aigoual, nas Cévennes, e a estação de biologia marina de Sete. Além disso, ele estaria em estreita relações intelectuais com os centros de cultura e das sociedades científicas em Arles, Nimes, Avinhão, Tarascon, Béziers e Narbona. E o contato seria permanente entre o Colégio dos Escoceses - nem um círculo social nem um partido, mas “um grupo evolucionário” - e, por exemplo, a Escola de Arqueologia dos Eyzies e a Escola regional da Dordonha, dirigida por Paul Reclus. Em torno do Colégio dos Escoceses, Geddes considerava um Colégio dos Americanos, um Colégio dos Índios - de fato, um colégio para todos os agrupamentos humanos do planeta. Reunidos aí, na “região incomparável do Languedoque”, eles fariam do lugar “um cruzamento de estradas, um ponto estratégico do saber e da cultura”, capazes, a longo prazo, de criar o equivalente da velha cultura ocitana …

Para Lewis Mumford, discípulo de Geddes, autor da Cultura das cidades (1938), esse projeto era “um elefante branco”, ou seja, um sonho extravagante. Bom, vivam os elefantes brancos! Sem eles, o mundo seria mais pobre e, nitidamente, menos interessante.

Mas, sonhos e projetos à parte, voltemos ao caminho existencial e intelectual de Geddes.

No momento em que uma carreira de biólogo - que prometia ser brilhante - se abria diante dele, uma ruptura realiza a sua progressão. Parece que ele abandona a biologia. O abandono, de fato, era apenas superficial - no mesmo ano de sua morte, ele publica, em colaboração com J. Arthur Thomson, Life : Outlines of General Biology (“A vida: esboço de biologia geral”). Mas é verdade que, por volta de 1878 e 1879, o campo de seus interesses e de suas atividades se torna complexo e que, no lugar de uma pesquisa setorial, algo mais amplo, mais dificilmente passível de ser definido, se instale. Há aí duas razões: uma de ordem técnica e outra de ordem intelectual.

Na família Geddes, certa fraqueza ocular era frequente - fraqueza acentuada em Patrick por meses de intenso trabalho no microscópio. Acrescente a isso a luminosidade ofuscante do platô mexicano, onde Geddes se encontrava em 1879, encarregado de uma missão geológica, botânica  e zoológica. O resultado foi uma cegueira temporária, que exigia dez semanas de convalescência em uma obscuridade total. Foi naquele momento que, tateando a moldura e as barras de uma janela, Geddes teve a ideia de suas “máquinas de pensar”: essas grades (com nove mil caixas, para começar), esses esquemas gráficos que iam lhe permitir de colocar em relação e de coordenar elementos de informação e de pensamento diverso. Por exemplo, ao colocar LUGAR na primeira caixa de uma grade de nove caixas, TRABALHO na quinta e PESSOAS na nona e, ao completar a caixa um pelas caixas dois e três que acrescentam a LUGAR os demais fatores. E assim por diante, obtém-se um esquema complexo da vida prática onde se vê no trabalho a geografia, a antropologia e a economia.

LUGAR

LUGAR-TRABALHO

LUGAR-PESSOAS

TRABALHO-LUGAR

TRABALHO

TRABALHO-PESSOAS

PESSOAS-LUGAR

PESSOAS-TRABALHO

PESSOAS

 

Aumentando os esquemas - Geddes ia preencher até 144 caixas - e enriquecendo os elementos de informação, chegamos a conceitos cada vez mais complexos e férteis. Mas, para voltar à primeira grade de nove caixas e à tríade LUGAR-PESSOAS-TRABALHO, estas vieram diretamente da tríade LUGAR-FAMÍLIA-TRABALHO de Le Play. Mas é significativo que, em “FAMÍLIA”, Geddes substitua “PESSOAS” - noção às vezes mais ampla e mais disforme.

Geddes tinha entrado em contato com o pensamento de Le Play durante o seu ano parisiense. Um dia, na rua Jacob, ele observou um cartaz que anunciava conferências por um certo Edmond Demolins (discípulo, como eu disse acima, de Le Play) sobre “A Nova ciência social”. Intrigado, Gedes assistiu a uma das conferências de Demolins, o que foi para ele uma revelação. É preciso dizer que o seu terreno mental estava, em parte, já preparado. Durante seus anos de estudo, sob a direção de Huxley, ele tinha acompanhado o movimento de todo o pensamento mais avançado da época. Entre os autores que chamavam mais a sua atenção - o próprio Huxley não os apreciava muito - estavam Herbert Spencer e Auguste Comte. O que interessava para Geddes em Spencer é o fato de ele ser contra os darwinistas puros e fortes. Huxley era dos que queriam ver na evolução natural apenas uma competição implacável, mortífera e a persistência do mais apto. Spencer via nisso também, sem negligenciar os outros fatores, sinais de cooperação. Quanto a Comte, suas ideias estavam no ar na Inglaterra desde a publicação por John Stuart Mill, em 1865, de seu Auguste Comte and Positivism. Geddes tinha lido esse livro, ao mesmo tempo em que lia algumas obras do próprio Comte, e ele tinha entrado em contato com o grupo dos positivistas ingleses dirigido por Richard Congreve. Geddes se interessava pela ciência social comtiana por várias razões. Inicialmente, ele via nela uma tentativa de coerência global, que lhe parecia falhar, aliás, na sociedade moderna. Em seguida, ele gostava do slogan: “Induzir para deduzir a fim de construir”. Ele estava ainda fascinado pela classificação que Comte realizava na história social humana (do teólogo-militar ao tático-individualista e, daí, ao técnico-cientifico). E, para finalizar, ele estava intrigado com a  ideia de que a matemática, a física, a química, a biologia deveriam ser concebidos apenas enquanto estudos preliminares, visando à uma nova ciência social. Quanto a Le Play que, como vimos, julgava Comte sistemático e abstrato demais, seu pensamento poderia ter tido considerável influência na Inglaterra em geral e, para Geddes, em particular, desde essa época, mas ele era desconhecido.  Mesmo o Edinburgh Review, em geral, muito ao par dos desenvolvimentos intelectuais na França não fazia nenhuma menção disso. Foi necessária a descoberta por Geddes do pensamento de Le Play em Paris para que  este pudesse desempenhar o papel que retornava para ele. Certamente, ele o adaptou às suas próprias necessidades. Ele deixou de lado os estudos dos orçamentos familiares e o da distribuição dos poderes no interior desse ou daquele tipo de família para concentrar-se na tríade Lugar-Família-Trabalho - que ele traduz, como pudemos ver, como Lugar-Pessoas-Trabalho. Se essa tríade lhe parecia particularmente operacional, é porque ela estava próxima também da tríade que ele conhecia em biologia: meio ambiente, função, organismo. A partir de então, Geddes ia desenvolver a ideia da monografia regional que ele tinha encontrado em Le Play, ao desenvolver, por exemplo, seu famoso diagrama da Valley Section (“Golpe de um vale”): seguimos aí o movimento de um afluente, de sua fonte até a sua desembocadura, a região montanhosa habitada pelo caçador, o minerador, o pastor, o fazendeiro e campestre, a região costeira pelo pescador e pelo comerciante. Mas, ao mergulhar em monografias, Geddes nunca perdia de vista a concepção  global que o tinha marcado em sua leitura de Comte. De fato, ele ia considerar o seu trabalho sociológico como uma tentativa de combinar o pensamento de Comte com o de Le Play. Eis o que ele escrevia em The Sociological Review em 1918: “A ciência humana nasceu quando Auguste Comte [] concebeu o longo desenvolvimento da história humana como o conflito entre quatro tipos sociais: o Povo, os Chefes, os intelectuais e os Emotivos - o conflito deles e, às vezes, a cooperação deles. Ao mesmo tempo, Frédéric Le Play [] estava revelando a diversidade das formas regionais e sua importância geográfica e econômica. O que esperamos agora é a unificação desses dois pontos de vista”.

Desde 1890, Gedes ensinava a sociologia em Edimburgo. Em 1903, com Victor Branford e alguns outros, ele fundou, em Londres, The Sociological Society, que tinha iniciado como um simples grupo de estudos que tentava aprofundar e colocar em prática a obra de Comte e de Le Play. Em 1908, foi publicado o primeiro número de The Sociological Review. Le Play estava pouco presente aí, mas em 1902, foi publicada a tradução de uma das monografias que tinha feito parte dos Operários europeus e, em 1920, uma curta biografia. Foi necessário esperar 1936 para que aparecesse uma tradução ao menos parcial dos Operários europeus (Family and Society, Zimmerman). Durante esse tempo, traduziram-se os livros de alguns de seus discípulos: um grupo de trabalho da Sociological Society dedicou, por exemplo, dois anos à tradução do livro de Demolins : Como a estrada cria o tipo social. E a Sociological Review publicou outros estudos desse gênero (baseados na tríade: Lugar-Pessoas-Trabalho):Norwegian studies(1924), The Brenner Region(1927),Rome, Past, Present and Possible(1927). Mas, seja por meio de seus próprios escritos, seja por meio dos de seus discípulos, Le Play permanecia como a principal inspiração. Quando a Sociological Society se instalou em novos locais em 1920, batizaram-se estes: Le Play House. Quando a Le Play Society, que tinha iniciado na seção de geografia da universidade de Londres, ela foi fundada em 1930 e a referência principal permanecia ainda explicita - o método de Le Play era considerado como o melhor para ser estudado, em interação, paisagem, instalação e tipos humanos. Ainda aí, os estudos se sucederam rapidamente: Luxembourg Studies (1933), Les Eyzies and District (1934), Polish Studies (1934), Eastern Carpathian Studies (1936), Scandinavian Studies (1938).

Patrick Gedes era o instigador e o principal líder de todo esse movimento. Mas, no momento em que ele atingia seu ritmo de travessia, ele próprio já estava em outro lugar. O que fazer de um sociólogo que se permite falar “da sociologia do outono”? É preciso segui-lo em um outro “campo”.

Neste ensaio estranho e fascinante, “A sociologia do outono”, Geddes reformula a concepção da evolução humana que ele tomou de Le Play: a saber que o meio ambiente - o solo e o clima - determina todas as formas primárias do trabalho que, por sua vez, a natureza desse trabalho determina a forma da família, que a forma familiar introduz à estrutura da sociedade e que a estrutura social influência fortemente, se ela não determina, o indivíduo em sua vida e em seu pensamento. Mas, a partir desse momento, Geddes vai insistir cada vez mais no possível. Acontece, diz ele, de um indivíduo conseguir dar uma olhada pela “janela estreita” de sua existência, momentaneamente consciente de possibilidades latentes - mas, na maior parte do tempo, o arrancaremos desse momento de visão para conduzi-lo “ao ateliê, à cama ou à mesa”. Dos que, apesar de tudo, permanecem obstinadamente em suas janelas, a maioria se dedicará a uma ou a outra especialidade de determinada disciplina. Contudo, existe ainda a possibilidade de abrir, além de todas as “janelas estreitas”, além de todas as disciplinas separadas, “uma vista mais ampla da natureza e da vida”. Assiste-se então a “concepções sintéticas”, nas quais a arte e a ciência, a física e a estética, a economia e a ética convergem e se conjugam - como para Leonardo da Vinci, por exemplo. Ao falar sobre a sua própria época, Geddes declara que o materialismo e o espiritualismo - esses resultados gêmeos de um dualismo mecânico - ao tempo deles, e que a via está aberta à uma “disciplina unitária” (complexa, certamente, mas nem labiríntica nem caótica), que introduza “um cosmos em evolução, um Uni-verso em movimento”.

Contrário à dialética da ação e da reação, contrário a todas as concepções míopes propostas em nome de um realismo imediato e local, Geddes propõe, não o imaginário (que desempenha o papel de compensação, na ausência de novo pensamento), não uma projeção utópica, mas o que ele chama de “reality-vision”, ou seja, a realidade-visão, que é uma atividade do espirito que ultrapassa os poderes ao mesmo tempo do realismo e do imaginário. Ao contornar as especializações estreitas, essa visão não se dissocia do conhecimento científico: ela emprega, com prazer, do lado da matemática, as equações algébricas simples e a geometria elementar e, do lado da física e da biologia, algumas noções concernentes, por exemplo, à conservação e à dissipação da energia e as funções do organismo vivo. Tais conhecimentos preliminares se abrem, depois da sociologia e da economia que, por sua vez, levam à estética: Chegamos assim ao seguinte paradoxo: a função da economia física prática é discutir menos para aumentar, não tanto o pão como a arte”.

Em termos de sua própria inserção sócio-econômica, Geddes tinha sido laboratório de botânica em Londres; em seguida, assistente de botânica prática em Edimburgo. Foi então que um filantropo escocês, Martin White, que se interessava  pela educação experimental, criou para ele na universidade de Dundee uma cadeira especial, cuja vantagem principal era que Geddes podia concentrar todo o ensinamento que lhe pediam no espaço de três meses (de abril a junho), estando livre para dedicar o tempo restante a pesquisas pessoais e a viagens. Ele aproveitou o máximo disso.

Grande parte do tempo, ele transportava de lugar em lugar sua exposição urbanista, sua Cities Exhibition. Ele via nela uma contribuição maior ao que ele chamava de “sociologia ativa”, que liberava o pensamento e a ação da política dos partidos, da confusão dos nacionalismos e da sistematização marxista. A Cities Exhibition tinha como tarefa não apenas analisar a história das cidades e criar condições de vida citadina mais agradáveis, mais interessantes, mas também elaborar programas de grupos de estudos, de associações, de instituições de todos os tipos que tentaram promulgar essa intensificação da vida que carrega uma cultura viva. Ele vendia tais ideias de Edimburgo a Bombay, passando por Dundee, Dublin e muitas outras cidades. Em Dumfermiline, ele elaborou um plano de estudo para “parques, jardins e instituições culturais”. Em Dundee, ele criou um jardim botânico, o paisagismo - o que ele chamava de “a escrita dos jardins” -, sendo um de seus velhos amores. Na Índia, onde ele ia ocupar uma cadeira de sociologia na universidade de Bombay, ele reuniu em torno dele o físico J.C. Bose e o poeta Rabindranath Tagore, com a ideia de persuadir Gandhi para efetuar “uma reorganização das ciências da evolução”.

Além de suas exposições e de suas apresentações orais, de suas cogitações e de suas conferências, com a finalidade de tornar disponíveis “livros vivos” que se situam fora da massa contemporânea da “literatura”, ele decidiu fundar uma editora. Ele publicou nela uma revista (The Evergreen) e três séries de livros: uma série sobre a evolução, uma série sobre as artes plásticas e uma série sobre a poesia. Geddes era bastante consciente do fato de que o que ele tentava fazer era o começo de um começo: “Nossos escritores realizaram até aqui apenas uma parte ínfima de suas potencialidades”. Quanto à sua revista, ela era baseada na ideia de um “retorno à natureza”. Esse XIXth century tinha respondido de maneira grandiloquente em termos de Ciência, de Indústria, de Literatura e de Artes - “contudo, ainda faltam muitas soluções”. Para encontrá-las, seria necessário penetrar mais longe no “mundo exterior”, aquele dos demais animais, das plantas e das rochas.

Havia então a cidade[1], a univer-sidade - por essa palavra eu quero indicar aqui o conjunto das instituições culturais - e o próprio universo.

Foi a essa tríade que Geddes dedicou seu Outlook Tower (tour das perspectivas), a realização concreta da “torre aberta” que ele tinha evocado em seu ensaio sobre "a sociologia do outono”. Localizada nas alturas de Edimburgo, essa torre, onde Geddes reunia todos os seus documentos, todos os seus dossiês, ia tornar-se o símbolo de todo o seu trabalho. Ele a queria em relações estreitas com outras instituições do mesmo gênero através do mundo inteiro. Desde 1892, ele tinha como hábito convidar, em Edimburgo, para dar conferências os que ele considerava como os espíritos mais informados, mais esclarecidos de sua época: psicólogos, antropólogos, sociólogos, geógrafos, etnólogos, filósofos - nomeemos, entre outros, Eliseu, Reclus, Kropotkine, Haekel, Paul Desjardins, Edmond Demolins, Willian James. Desde então, ele os convidava ao seu Outlook Tower (que continha ainda uma “inlook tower” - um quarto nu destinado à meditação). Mas com a passagem do tempo, ele via a Torre também como uma etapa. Em 1902, ele elaborou com o geógrafo Bartholomew um projeto para um Instituto Nacional de geografia, que ele via como um “super Outlook Tower”. E, em uma carta, ele descreve o Outlook Tower n° 1 como protótipo “dessa grande cidadela da cultura qual [ele sonhou] frequentemente, mas da qual [ele deve] deixar a construção para outros”.

Durante todo esse tempo, Geddes desejava desenvolver e afinar sua terminologia, esforçava-se para encontrar palavras adequadas à sua visão, palavras para definir a “disciplina unitária” que ele considerava.

Para que espíritos fáceis não rejeitem seu projeto como “utópico”, ele precisa que não é a utopia que o interessa, mas a eu-topia (o bom lugar). Quanto à época que, segundo ele, devia seguir à época científico-industrial. Ele a chama, às vezes, “etho-política” (etho-polity); outras vezes, “ethicósmico” (ethicosm). Nós vemos empregar ainda alternadamente: “psicorgânico” (psychorganic), “eu-psíquico” (eu-psychic), “biosófico” (biosophical) e “polito-gênico” (eu-polito-genics, a ciência da boa cidade[2]). Nada disso tudo é muito satisfatório, mas vê-se bem onde ele queria chegar com isso. No interior dessa nebulosa semântica global, encontra-se um círculo onde reina um vocabulário técnico mais preciso: “paleotécnico”(paleotechnics), “neotécnico”(neotechnics),biotécnico” (biotechnics) e “geotécnico”(geotechnics). Por “paleotécnico”, Geddes entendia a confusão da revolução industrial: a exploração desenfreada dos recursos naturais e humanos, das paisagens devastadas, das cidades megalopolitanas cheias de indústrias, de escritórios e de favelas, vidas humanas nunca desenvolvidas. Quanto à “neotécnica”, ela significava: energias não poluentes e a necessidade de reconciliar o útil e o belo, a aglomeração urbana e a paisagem natural ou ligado a um labor primário. Por “biotécnica”, ele entendia os meios para promover um pensamento vivo e vivificante, que abriria a porta a existências mais florescentes. E, enfim, a geotécnica devia ser o estudo que permitiria ao ser humano aprender como habitar plenamente a terra.

Em uma carta de 1917 a Victor Branford, Geddes fala da necessidade de tornar-se cada vez mais “aberto”. Isso significava: ir além  do urbanismo da sociologia, dos diagramas e, mesmo, do Outlook Tower, sem abandoná-los completamente, mas os integrando a uma unidade cada vez mais complexa, cada vez mais fina. O que ele propunha doravante era um mergulho no “rio da vida cósmica”, que permitia transcender “nossas concepções micro-cósmicas e locais”. Cada vez mais, ele queria ultrapassar os estudos cívicos e geográficos para abordar, por meio da “bio-psicose” (ele entendia por isso uma superação da dialética sujeito-objeto), o que ele chamava de “autogênese” (actual autogenetic process).

Foi em momentos particularmente intensos de sua vida (por exemplo, em 1922, no Himalaia), onde ele sentia que sua concepção ao mesmo tempo profunda e aberta das coisas parecia prestes a aparecer no horizonte, que Geddes sentia a necessidade de uma expressão poética. Nesses momentos, ele não sabia muito bem o que acontecia com ele. Às vezes, ridicularizando a si próprio, ele fala de “exclamações bárdicas'. Em outros momentos, mais teóricos, ele considera que o fundamento do pensamento e da ação deve ser a poesia. Em outros ainda, ele vê a energia prática, a inteligência racional e a emoção artística se unir em uma unidade mais alta - “como as três cores que compõem a luz branca”. Com a finalidade de precisar o que ele entendia por poesia, lembremos que, para ele, o ensaio de Goethe sobre a morfologia não é apenas o topo de suas pesquisas científicas, mas “provavelmente o maior de seus poemas”.

É nesse contexto último dos trabalhos de Patrick Geddes que nós abordamos, com toda evidência, as margens da geopoética.

 

Kenneth WHITE
(Tradução de Jordélia Mendes Brandão)

 



[1] Cidade histórica

[2] Cidade histórica