Carta sobre as origens da geopoética [1]

1.

Se grande parte do trabalho que eu efetuei concerne ao litoral (margem, costa,litoral, praia ...) - a tal ponto que aconteceu de eu falar sobre litoralidade (o que, em minha mente, dava um espaço físico à literatura e uma força oral à linguagem escrita) -, eu penso que é por várias razões.

Para começar, nós estamos aí próximos às origens biológicas, e não podemos ignorar os ritmos primordiais. Nesse espaço, nós temos um pé na sociedade humana - espaço habitado, inscrito - e outro no cosmos, o caos-cosmos, o caosmos, não humano. Provavelmente, é por isso que um velho texto pertencente à tradição que eu carrego, talvez, na moela de meus ossos - texto intitulado Imacalla in da thuarad (O diálogo dos dois letrados) - diz o seguinte: "O rio sempre foi o lugar predileto dos poetas".

Em seguida, nascido e educado na margem atlântica da Europa, mais precisamente na costa oeste da Escócia, sua topografia está inscrita em meu cérebro. Estou longe de acreditar que a paisagem original de um indivíduo dita necessariamente sua paisagem mental: com uma inteligência enérgica e um espírito de descoberta, pode-se chegar a pensar com isso, indo de encontro a qualquer fixação localista e a qualquer ideologia identitária, que outras paisagens físicas são mais interessantes. Mas, é fato que a costa Oeste da Escócia chama a atenção e inspira o espírito. Lembraremos da ideia proposta por Humboldt em Cosmos, segundo a qual a própria topografia da costa de Hellas, essa multiplicidade de promontórios e de ilhas, de enseadas e de baías, desempenhou um grande papel na gênese do "milagre" intelectual grego. Ora, a costa oeste da Escócia, com seu contorno altamente irregular e suas centenas de ilhas, possui uma topografia similar.

Em terceiro lugar, agora que começamos  a ouvir falar do conceito de "Europa", eu penso que seria bom para o continente lançar um olhar para o Oeste, de levar em consideração sua abertura atlântica, bastante negligenciada - ao menos, na França. Pretendendo ser um país "latino", a França se voltou, talvez, muito exclusivamente para o Mediterrâneo.  Ela busca aí uma identidade. Em uma época de instabilidade cosmopolítica, de estandartização universal, pode-se compreender essa inclinação a abrigos de cultura antiga, dizendo para si próprio que temos um caso com o bloqueio. Que se co-mece no Mediterrâneo, assim seja! É um espaço fascinante. Mas, este apresenta, há séculos, sinais de esgotamento e, mesmo nos primeiros séculos, saiam dele fenícios,fiteos, monges errantes ... Além do discurso identitário, além das culturas-encerradas, onde se sufoca, pode haver um espaço de respiração, um lugar de movimentos esquecidos e, mesmo, inéditos; quem sabe, talvez, um novo sentido da cultura.

É com tais nuvens de ideias (meteorologia mental) que eu examino há longos anos - esse exame acompanhado de arte e de pensamento - o litoral atlântico.

2.

Em termos de civilização, esse Oeste atlântico da Europa foi marcado por dois fatores: um destino negativo (eu pego emprestado a noção do geógrafo Le Lannon: "Não há entre nossas finisterras atlânticas outra unidade, há somente uma comunidade de destinos acima de tudo negativos") e uma revolução industrial. Esses dois fatores - de um lado, o isolamento de uma região finisterra economicamente arcaica; de outro, uma explosão industriosa economicamente violenta - podem parecer completamente antinômicos, mas existem entre eles, parece-me, elos profundos. Ao drenar a população ativa para os grandes centros, a revolução industrial contribuiu para o isolamento que, em si, não é necessariamente negativo: o isolamento pode ser uma possibilidade. É quando ele se torna solidão que ele se torna realmente negativo. Quanto às origens profundas da revolução industrial, eu proporia esta ideia: ao se divorciarem de toda sensação da terra por uma ideologia ou uma religião (o puritanismo, por exemplo), espíritos ativos vão começar a imaginar e a inventar. É um fato bastante conhecido, por exemplo, que os britânicos (escoceses encabeçando frequentemente) estiveram à frente da revolução industrial. Passemos rapidamente aos problemas de identidade provocados pelo desenraizamento e pela solidão e para as tentativas (românticas) de reviver antigas tradições (enquanto folclore, frequentemente, caprichoso). Foi dito, por exemplo, a propósito da Irlanda, e mesmo na Irlanda, que a perda do gaélico era uma tragédia, e a tentativa feita para preservá-lo uma farsa. Tragédia e farsa, isolamento e violência, silêncios e explosões - esse quadro geopsicológico se aplica, em diversos graus e com manifestações diversas, segundo as microrregiões, a toda a periferia do grande Oeste europeu. Dizendo de outro modo, essa região ainda não encontrou sua coerência, sua composição, sua poética - mantendo uma espécie de poeticidade imprecisa e, é claro, todos os tipos de pequenas poesias localistas.

Ora, outro dia, eu estava à beira do Atlantic Quay, em Glasgow, de onde se pode ver facilmente o quanto a situação civilizacional mudou: há, claramente, menos indústrias cuspindo uma fumaça amarela ou preta, e os guinchos dos canteiros navais se erguem no cenário como esqueletos em um museu de história natural - ou como obras de arte. É evidente que nós estamos abandonando a fase industrial da civilização para irmos em direção a  outra coisa: uma era "pós-industrial", marcada por duas atividades consideradas como essenciais: a informação e a cultura. Mas "cultura", é preciso se lembrar disso, não significa a produção de mais livros ou a criação de uma orquestra suplementar; e, se a informação deve ser fator de cultura, é preciso que ela se torne "enformação".

Em O Destino das civilizações, Léo Frobenius avança em uma hipótese. Segundo o autor, após a "conquista mecânica" do globo, seguida da civilização tecno-economista, deveria acontecer uma grande virada. E, sempre segundo ele, já que os povos do litoral atlântico foram em grande parte responsáveis por essa fase tecno-economista da civilização e já que é no litoral atlântico que esta começou a se desenvolver, é aí que se veriam não somente os primeiros sinais de seu fim, mas talvez os inícios de outra coisa - outra coisa além de simples reações à fase tecno-economista da parte dos que se sentiam lesados por ela, atingidos em sua "identidade" etc - prolongo um  pouco a argumentação. O que "deveria", o que poderia começar seria uma cultura mundial (Weltkultur) que corresponderia à economia mundial já mais ou menos instalada. Essa cultura teria três características principais:

1)    Ela estaria fundada sob um tipo de pensamento liberado ao mesmo tempo do racionalismo francês, do realismo inglês e do materialismo norte-americano;

2)    Ela saberia operar uma orquestração de todas as culturas;

3)    Esse próprio pensamento seria uma abertura à intuição direta, ao "choque" do fora, o que exigiria uma "atitude oriental".

Eu penso que seria relativamente fácil obter um acordo geral sobre a necessidade de sair do racionalismo, do realismo e do materialismo (há todo um movimento que se esforça para isso há um século) - sem cair no irracional, no irreal ou na "espiritualidade" (toda uma parte de nossa civilização se perde) ... Quanto a uma "atitude oriental", que não significa nem a conversão em crenças nem a importação pura e simples de sistemas codificados, mas seguramente o estudo de princípios e de vias outras além daqueles do Ocidente, é uma coisa à qual eu me interesso há muito tempo. Em um ensaio da Figura do fora ("O zen e os pássaros de Kentigern"), eu mesmo tentei demonstrar como essa "atitude oriental" pode encontrar no litoral do Oeste um terra de acolhida. É sobre a noção de "orquestração das culturas" e sobre o movimento em direção a uma cultura mundial que corremos o risco de fracassar, pois alguns desejarão ver nisso apenas uma espécie de melting-pot uniforme. Tal orquestração é um trabalho poético, o que explica inicialmente porque suas realizações são raras - no entanto, algumas obras de arte da modernidade, que findam ao irem nesse sentido na música, nas artes plásticas e na literatura, existem; em seguida, por que essas manifestações, quando elas existem, são difíceis de se integrar à sociedade, que vive normalmente seja sob modelos clássicos seja sob futilidades. Essas obras que eu evoco são como ilhas de um arquipélago que não existe ainda. Elas existem em um no man's land. Ao esperar, cada nação, cada "comunidade cultural" estabelecida, tenta, ao produzir "cultura", persuadir-se de que ela tem ainda "uma cultura", ao dizer para si, talvez, intimamente, nesses momentos fugitivos de lucidez, que se isso não tem nada de importante, ao menos, é respeitável ... A situação é diferente, se quisermos que exista um mundo, e não apenas um comércio pseudo-cultural. Se, para começar, a globalização - que me parece, contudo, o horizonte desejável - é um grande pedaço, pode-se já considerar algumas áreas de cultura. Tomando o Mediterrâneo como uma grande área cultural, e não apenas como reservatório de cultura clássica, seria necessário considerar não somente as contribuições gregas, romanas, judias e árabes, mas também as dos persas e dos fenícios (de Tir e de Cartago), assim como todos esses povos sombrios das costas e das ilhas que deixaram traços (em Malta, na Sardenha, na Espanha meridional e nos Baleares) que não se inserem, de modo algum, no contexto da cultura clássica.

A "área" que eu gostaria de explorar aqui é a do litoral atlântico, desde, digamos, Portugal até as Hebridas e, mais particularmente, desde o norte do golfo da Gasconha até a ilha de Lewis - digamos, de Biarritz até Stornoway.

3.

Eu tomarei como ponto de partida a janela de um apartamento na cidade de Pau (Pirineus Atlânticos). De minha "janela filosófica", eu podia contemplar grande parte da cadeia pirineia: à frente, o pico do Midi d'Ossau, o último grande monte granítico antes de a cadeia ter declinado para o oeste - para o pico de Anie, à beira do País Basco, e para o pico Orhy e para a Rhune. Na época, eu lia assiduamente Eliseu Reclus, geógrafo e anarquista, educado em Orthrez, há alguns quilômetros daí - de fato, o tomo II de sua Geografia Universal  me acompanhava há anos. Eu me lembro, em particular, de uma frase que foi um choque para mim: "Em pleno cume da cadeia ocidental, poder-se-ia acreditar estar em na Escócia chuvosa". Eu me perguntava se não havia outras correspondências, mais secretas, desse tipo: seria necessário ver  um parentesco linguístico entre o vale de Aran dos Pirineus, as ilhas Aran ao longo da costa da Irlanda e, é claro, a ilha de Aran diante da qual eu tinha crescido na costa oeste da Escócia? Eu gostava das evocações que Reclus fazia dos glaciares e das tormentas, do  arenito vermelho rico em ferro dos Landes onde, em determinada época (início do século XIX), a terra era tão barata que a medíamos em escopo de voz: desde o ponto onde você se encontrava até o ponto onde se podia escutar ainda a sua voz, a terra pertencia a você - essa associação entre voz e território me agradava. Eu gostava ainda do que ele tinha para falar sobre o "complexo hidrográfico" da costa atlântica. Eu gostava do modo como ele falava dos bascos como aventureiros e irredutíveis que tinham descoberto o Novo Mundo bem antes de Colombo: "No país Basco, a tradição unânime atribui a descoberta do Novo Mundo a um certo Echaide; e essa tradição tem somente o plausível, já que desde meados do século XV os mapas indicam ao longe, no Atlântico ocidental, as ilhas dos "Bacalaos" ou dos "Bacalhaus" e que esse nome basco se conservou para a ilha de Terra-Nova até uma época recente. A designação de Cabo-Bretão, tomada emprestada do antigo porto do Adour, foi aplicada pelos marinheiros eskuaras na grande ilha do litoral da Nova-Escócia ...". Eu tinha a impressão de estar em uma região, em uma área, que a Europa e a história tinham esquecido; uma área que, ao manter laços com um passado arcaico, tinha se lançado em direção ao desconhecido, em direção a um mundo que está por vir; uma área onde se podiam ler conexões profundas; uma área com realidades geográficas fortes onde alternavam rochas sombrias envolvidas por bruma e espaços de luz brilhante.

Em meus estudos universitários na Escócia, após ter estudado muito latim e tateado grego, eu tinha optado finalmente pelas línguas modernas; mas eu mantinha uma espécie de desejo abstrato por uma língua mais "universal". Por essa razão, acontecia de eu contemplar páginas de matemática (Poincaré, Riemann), ou ainda, páginas de sânscrito - houve um verão em que eu passei dias traçando cartas de devanagari em uma praia dos Landes. E, em Pau, eu me pus a ler alguns poetas latinos que tiveram ligação com essa região do sudoeste.

Havia, por exemplo, Ausone que, de Burdigalia (Bordéus), escrevia isso a seu amigo Téo - que morava em uma cabana com telhado de palha em um promontório do Médoc:"O que você faz neste momento, poeta do fim do mundo, você que trabalha a praia e colhe as areias?" Eu podia facilmente imaginar que a pergunta se dirigia a mim... E, depois, havia Festus Avienus, o autor do longo poema geográfico Ora marítima, o qual eu me pus a traduzir com o título Rios do Ocidente [2]. Avienus tinha acesso a informações que mesmo Herodoto de Halicarnasso não conhecia; e seu poema oferece não somente uma descrição das terras europeias lavadas pelo Atlântico, desde a Espanha até a Escócia, mas pré-visualizações das origens múltiplas e migratórias dos espanhóis, dos portugueses, dos franceses, dos alemães e dos dinamarqueses. Tendo como seu ponto de partida as colônias de Hércules, na saída do Mediterrâneo, Avienus sobe em direção aos rios do norte chamados Œstrymnis, passando pela ilha da Lua, pelo golfo Galático, pelo promontório Sagrado, pelas ilhas Pelagianas e pelo Cabo de Vênus; depois, retorna às colônias de Hércules para seguir pela costa da Espanha e da Catalunha:  cabo de Vênus (não o mesmo que eu mencionei acima), Grande Pântano, ilha Gimnésia (Maiorca), Arraco, Callipolis (Barcelona) até os Pirineus. Em seguida, ele vai dos Pirineus até Marselha, passando pelo cabo Branco e pelo delta do Ródano. Em sua introdução, Avienus havia anunciado que o seu poema iria até o mar Negro, mas ele parou abruptamente aí.  Pouco importa, na estrada, nós aprendemos muitas coisas: que foram os Tartessos da região de Cádiz que fizeram a viagem pela Cournalha britânica em busca de estanho em nome dos fenícios; que os primeiros celtas estabelecidos na Grande-Bretânia tinham uma cultura marítima. Mas, além dessas informações surgidas dos tempos antigos, nós temos, com o poema de Avienus, a sensação de penetrar no próprios arquivos do mundo, ao seguir as linhas das costas desconhecidas, ao recolher traços enterrados ou quase desaparecidos. É uma iniciação à teoria dos mares, à lógica do litoral e à poesia oceânica tais como elas puderam ser apreendidas por um romano do século IV. De todos esses poetas arco-atlânticos, foi provavelmente Avienus quem mais me fascinou. Mas, eu não me esqueço de Sêneca, Sêneca da Espanha, nem da profecia estranhamente iluminada de sua Medeia:

Venient annis
sæcula seris quibus Oceanus
vincula rerum laxet, et ingens
pateat tellus Tythisque novos
detegat orbes, nec sit terri
ultima Thule

- "Nenhuma Thule é a Thule final." Isso foi dito catorze séculos antes da partida de Colombo ... Eu gostava de Sêneca não somente por sua visão de "um novo mundo", não somente por seu exílio (o tempo, o espaço, o silêncio), mas por suas "questões sobre a natureza" (naturales quæstiones) e por seu estilo: essa troca rápida entre os interlocutores denominada stichomythia.

Se alguns antigos poetas estavam presentes em minha mente, eles estavam acompanhados por antigos geógrafos: Estrabão, Ptolomeu e Pompônio Mela. Em sua Descrição da terra, Mela declara que, a partir da Hispania, a costa segue, a princípio, uma linha reta antes de partir para o oeste em uma grande curva. Imagina-se um traçado geométrico na areia: a linha reta de Biarritz à ponta de Graves, a longa curva de Royan à ponta São Mateus. Estrabão, por sua vez, em sua Geografia, fala sobre "a região paraoceânica da Aquitânia", enquanto que Ptolomeu (Tratado de geografia), em sua descrição sobre "o oceano aquitano", permanece na linha eternamente em mudança entre a terra e o mar (o fenômeno não-mediterrâneo das marés).

Por que perder tempo lendo cosmógrafos e cartógrafos da antiguidade quando trabalhos modernos oferecem bem mais precisão? Bem, para algumas frases, para algumas palavras que têm uma beleza e a fascinação de seixos encontrados em uma praia. Para o sentido da exploração inicial, a sensação de uma progressão lenta e hesitante... devido também à sua simplicidade. Nos sete quilômetros de território que se estende entre a Espanha e a Bretanha, Ptolomeu faz menção de apenas seis rios, de quatro portos e de quatro promontórios. E, no entanto, isso não parece redutor - salvo se falarmos em uma redução ao essencial. O número limitado dos lugares observados, nomeados, dá uma sensação de espaço: um grande espaço nebuloso e vago - não nos perdemos nos detalhes; nos agarramos a um ponto e avançamos em todos, exatamente como na poética do haiku; observamos um fenômeno ao mergulhar no vazio.

E, depois, eu não negligenciei completamente os trabalhos modernos: estudos, mapas, documentos fotográficos, tais como essas fotografias aéreas que revelam as pequenas formas das areias submarinas. Tudo era bom, que até aumentava minha sensação, minha concepção da extensão e dos contornos (morfologia litoral...) e do movimento sensível (sonhador e pensativo) nesse espaço.

4.

"Ao cavalgar para o oeste, uma sexta-feira santa", diz um poema de John Donne, este idealista platônico para quem, quando ele encontra a "nova cosmologia" da modernidade (a de Newton), as ideias começam a bater furiosamente asas. Eu não cavalgava, e as minhas sextas-feira não eram santas; mas, a partir de Pau, eu ia frequentemente para o oeste.

Antes de seguir esse caminho, falemos dessa "janela filosófica" que eu já evoquei. A expressão é de Hölderin, em sua famosa carta a Böhlendorff de 1802: "... das philosophische Licht um mein Fenster" (a luz filosófica em minha janela). Eu tinha estudado Hölderlin em Glasgow e, depois, em Munique; eu o reencontrei no sudoeste da França, em Bordéus, mais precisamente em Lormont, onde ele tinha sido tutor e fazia parte desse "mapa de coincidências" que todo pesquisador conhece. Sua estadia em Bordéus serviu como inspiração para um de seus mais belos poemas, intitulado Andenken (Lembrança):

Sopre o vento do nordeste
O vento que, entre todos, me é caro,
Pois, aos marinheiros, ele é promessa
De espírito ardente, de feliz passagem.
Mas, parta agora e saúde
O belo Garona,
E os jardins de Bordéus
Lá, onde, sobre o banco íngreme
Vai a trilha e, no rio
Profundo, cai o córrego
Enquanto nobremente se inclinam
Carvalhos e choupos de dinheiro
[3]

Em minhas leituras de Hölderlin, eu havia retido duas ideias principais: a do "livre uso do nacional" - não é uma concha - e a tentativa feita para começar alguma coisa realmente nova desde o sol grego. Quanto à natureza geopoética da obra de Hölderlin, ela é evidente em seus poemas sobre os rios Reno, Meno e Danúbio e em seu poema sobre Cristóvão Colombo:

Tentativas para esclarecer
O que distingue o orbe esférico
Do orbe dos antigos

...

É necessário que eu vá até Gênova
Perguntar sobre a casa de Colombo

...

Você é completo em sua beleza
Apocalíptica ...

Partamos agora para o nosso tur para o oeste e subamos a costa celta-galaciana: Biarritz, com uma visita ao museu do mar, por seus pássaros e por suas baleias; Cabo Bretão, o lago de Léon, com a sua corrente de Huchet como um pequeno Mississipi; Mimizan, Biscarosse, quase perdido nas dunas (em um mapa do século XVII, lê-se: "Sob essas Dunas, havia uma Paróquia que, no momento, está coberta de Areias"); Arcachon, Lacanau, Montalivet, a ponta de Grave; o farol de Cordouan, tal como um ponto de exclamação branco lá fora na névoa azul; a Tremblade e seus montões de conchas de ostras; os terrenos baldios de Brouage, Roquefort, Oleron; a eclusa de Antioquia, a Ilha de Ré e sua ponta das Baleias; La Rochelle, com seu museu das Américas.

Toda essa costa do sudoeste está em contato com o Novo Mundo há muito tempo. Desde as grutas de Isturitz até os maravilhosos entrelaçamentos de salmões e de cervos, entre todas essas pessoas da margem às origens mistas (celtas, Iberos etc), engolidores de ostras, seringueiros de estanho, seringueiros de resina, existiram pesquisadores e localizadores, viajantes que sabiam seguir estradas estranhas: a dos megalíticos, a do estanho, a do mar em direção às terras novas. O Labrador não foi, em sua origem, o Labourd? Jean-Sébastien El Cano não navegou com Magalhães e deu a volta ao mundo, com os grandes olhos abertos, antes de retornar para casa? O primeiro de todos os trovadores, Guilherme IX de Aquitânia, aquele que cantava l'amor lontana, não nasceu aqui? Pensem em Jean-sem-Terra, filho perdido de Alienor de Aquitânia em Champlain de Brouage. Pensem no pirata Jean Laffitte de Dax, aquele que navegava livre como o vento no golfo do México e no baixo Mississipi antes de financiar a impressão do Manifesto Comunista de Karl Max... Em todas essas cabeças, novos mundos: sonhos e projetos. O Papa Inocêncio III não sonhou em transplantar o Santo Império romano do lado do Atlântico para fazer disso um Santo Império oceânico? Mas, no fundo, nem santidade nem império nessas finisterras, nessas múltiplas puntas arenas. Somente terras fantasmagóricas, terras vazias, sobre as quais ressoa os gritos selvagens dos bascos, l’irrintzna, que, como descreve Loti, sobe como relincho de cavalo, rasga o espaço e acaba como o riso de um louco ...

É aí, nesse território marginal, que eu errava por anos.

Diante de minha janela filosófica, tinham passado as sombras de Hölderlin, de Nietzsche e de alguns outros. Eu me situava ao final do idealismo, ao final da metafísica, colocando um pé diante do outro na página-praia onde estava inscrita, em letras de luz, essa frase: "O que você busca é um mundo". Eu estava obcecado pela ideia de mundo, de "novo mundo". Com a América como referência, mas apenas como referência, de modo algum como modelo ou como finalidade. Eu via nisso, no plano geral, somente um enorme fracasso, ao me interessar pelos surgimentos de energias primeiras cá e acolá. Nenhuma vontade de me misturar aos Estados Unidos, de me perder em todo o circo, de ficar preso ao moralismo sentimental. Eu me lembrava de uma frase de William Carlos Williams: o Novo Mundo, para ele, não era os Estados Unidos, e sim o lugar de uma sensação. Eu pensava em Thoreau que, ao final de Cape Cod, diz que, solitário neste rio atlântico, se pode esquecer os Estados Unidos. E eu pensava nesse pontifício máximo, Charles Olson, que dizia que, através do Atlântico, ele estava renovando algumas grandes figuras dos séculos XVI e XVII na Grande-Bretanha. Eu me dizia que era à beira da Europa, nas margens atlânticas, que os sinais e contornos de um "novo mundo" - sem ideologia conquistadora, sem utopia moralizadora, sem projeto de Prometeu - estavam para ser encontrados. Eu me lembrava de um dos personagens de Fernando Pessoa "olhando o Atlântico e saudando de modo abstrato o Infinito". Ma, nada de tão grandioso como a saudação ao Infinito, e não "quinto Império".

Durante alguns anos, natural obstinado do sudoeste e aquitanense absoluto, eu tinha feito de La Rochelle o ponto setentrional de minhas peregrinações - uma vez tendo chegado lá, eu recuava. Depois, eu comecei a retomar o contato com a minha Escócia natal.

5.

Durante as minhas primeiras idas e vindas entre a Escócia e a França, eu pensava em termos de revolução cultural. No momento dessa retomada de contato com o país caledônio, eu tinha outra coisa na cabeça. No plano cultural, a maior descrição do estado de coisas me parecia sempre La Terre gaste (The Wasteland) de T.S. Eliot. Ele próprio tinha tentado sair dessa situação ao se converter a uma ortodoxia cristã - solução que eu não podia aceitar. No plano literário, não estávamos mais com as grandes lamentações e com os afrescos de Eliot e de Pound, pois o terreno de pensamento e de ação tinha diminuído consideravelmente: os poetas cortavam a grama deles; os prosadores misturavam à distância dos romanos a sopa sócio-psicológica. De modo geral, os escritores davam, todos, a impressão de terem passado por escolas de creative writing e de terem saído delas com boas notas. Única exceção, a meu ver, MacDiarmid na Escócia, mas nem seu nacionalismo nem seu comunismo ganhavam a minha adesão; e, se seus longos poemas me interessavam pela quantidade de informações que eles veiculavam, eram raros aqueles nos quais a informação se tornava enformação; lidávamos com aglomerados informes e indigestos - preferíveis, e de longe, à produção literária normal, normalizada, mas deixando ainda muito a desejar.

De Eliot, nessa época, eu retinha sobretudo a pequena série de Landscapes, em particular, aquele escrito em Cabo Ann na costa de Massachusetts, que termina assim: "Abandone esse país ao final, entregue-o a seu verdadeiro proprietário, a gaivota tenaz - os palavreados acabaram". No que se referia a mim, os palavreados tinham, efetivamente, terminado. Eu me voltava para a paisagem, dizendo para mim mesmo que daí, talvez, graças a alguma coisa que eu denominava landscape-mindscape (paisagem físico-mental), poderia surgir um novo começo, uma nova base. Qualquer um que se interessa à noção de scape (extensão próxima de scope, envergadura, e de shape, forma) encontra rápido o suficiente Gerard Manley Hopkins, que elaborará uma teoria entorno de dois conceitos: inscape (a característica intrínseca de uma coisa - próxima da haecceitas, o "ser-assim", de Duns Scot) e instress (a maneira de atualizar o l’inscape das coisas, da vida, no espírito do leitor, do ouvinte, do espectador). Em 1881, Hopkins trabalhava, como padre jesuíta, na igreja Saint-Joseph de Glasgow. Naquele ano, ele fez uma viagem par as Altas-Terras, ao longo  da qual ele escreveu o poema Inversnaid:

Esse córrego marrom escuro de uma crista de cavalo
Que desliza
sua estrada e que ao rugir rola rochas,
No riacho e o vale dobra seu velo de espuma
E embaixo, no buraco do lago, cai em sua morada.
Uma
boina de espuma fulva recheada-de-vento
Gira e se desfaz
 na superfície do caldo
De um lago tão negro-de-breu, selvagem e ameaçador
Que ele lança e lança o
Desespero para afogá-lo,
Embebidos com orvalho, multicoloridos de orvalho, eis
As
dobras das colinas onde o dilúvio toca,
Os aglomerados ásperos de urze, os bosques de samambaias,
É o bonito freixo perolado inclinado sobre o córrego.
O que aconteceria com o mundo, se ele se visse em êxtase
O úmido e o
selvagem? Que eles tenham então nós deixado,
Oh! Que eles tenham nos deixado, o selvagem e o úmido.
Que vivam ainda as
ervas daninhas longas e os lugares selvagens!
[4]


Eu gostava da energia de um tal poema, assim como de sua sua apologia aos lugares selvagens (the wilderness). É a coisa sobre a qual Hopkins não cessa de retomar em suas cartas e em seus ensaios: "Eu desejo as terras selvagens, o inculto", "onde está a selvageria das terras selvagens?" (where is the wildness of the wilderness ?). Mas, eu achava o tom muito excitado. Eu achava também que ele era de uma linguisticidade - se posso dizer - excessiva.  Em alguns outros poemas, a teologia, penso, de igual modo, penetrava muito frequentemente. Enfim, e em última análise, eu me interessava mais à teoria do que à prática. Eu queria algo mais sóbrio, algo menos barroco, menos metafórico. Eu preferia de longe o poema-paisagem de Hopkins do que o de Eliot sobre a estepe de Rannoch, que não sai muito da história banal. Mas, eu não queria nem a narrativa histórica, nem o lirismo excitado, sobre-excitado.

Eu estava avançando no escuro em direção ao que eu chamava na época de uma "poética atlântica"

Mas, sigamos a topografia, passo a passo.

Quando criança e adolescente, eu tinha percorrido uma pequena "região atlântica" que consistia em alguns quilômetros quadrados na costa oeste da Escócia: a costa e o interior de uma aldeia do condado de Ayrshire, com a ilha de Arran (que constitui um resumo de qualquer topografia escocesa) erguida no horizonte. Mas, no momento desse novo contato com a Escócia, não se esquecendo da paisagem anterior, eu me interessava, sobretudo, por essa cadeia de montanhas, Drumalban, que vai do estreito da Clyde até o cabo da Raiva. Em sua Historia (século VIII), Adam Bede o chama dorsum Britanniae, a espinha dorsal da ilha de Bretanha, e o Fordun, em seu Scotichronicon (século XV), fala sobre "grandes montanhas que percorrem o meio do país, como os altos Alpes na Europa. É uma região de desfiladeiros  e de vales encaixados, de calhas glaciais e de platôs como o da estepe de Rannoch onde se tem a impressão de que as geleiras do quartenário acabam de se soltar, deixando o terreno sob uma estranha luz e como se estivesse à espera do despertar.

Ao caminhar na montanha, ao subir a costa, ao espionar o voo de um lagopedo ou de um louco de Bassan, eu lia todos os livros que me pareciam pertinentes: os que me dariam pura informação; os que conteriam elementos de uma escritura. Os cadernos azuis da British Regional Geology me acompanhavam permanentemente: "As ilhas e os promontórios que se escalonavam ao longo da costa oeste da Escócia são notáveis pelos vestígios que eles guardam de uma atividade ígnea  intensa ao longo do terciário - naquele período, há quarenta milhões de anos, platôs vulcânicos que faziam parte de uma região continental tiveram de se estender em linha continua ao longo do litoral ocidental"(Distritos vulcânicos terciários, 1935). Eu lia Mac Culloch, A Description of the Western Isles of Scotland (1814), Hugh Miller, The Old Red Sandstone (1841), Archibald Geikie, The Scenery of Scotland (1865), James Geikie, The Great Ice Age (1873), Heddge, Geognosy and Mineralogy of Scotland (1884), Craig, The Geology of Scotland (1965), Sissons, The Evolution of Scotland’s Scenery (1967), e muitos outros. A esses estudos científicos eu acrescentava leituras mais extravagantes, como, por exemplo, aquela do livro de Giraldus Cambrensis, Topographia Hiberniae (século XII), onde se trata de um certo Gurguintius (diríamos Gargantua), que teria levado da Espanha para a Irlanda dos Basclenses isto é, dos bascos ... ou ainda, o livro de Martin Martin intitulado A Description of the Western Islands of Scotland (1716), onde se encontram descrições que dizem respeito, por exemplo, à ilha de Arran: "Arran, sua Etimologia, suas Montanhas, suas Baías, sua Terra, suas Pedras, seus Rios, seu Ar" e onde, no prefácio, se pode ler isto: "Uma grande mudança sobreveio ao estado de espírito do mundo e, por conseguinte, na maneira de escrever". Eis, exatamente, o que eu buscava, o tipo de coisa que eu queria tentar realizar. E é verdade que se tinha assistido no século XVIII a um real começo: um novo interesse pelas coisas da natureza, novas matérias e novos métodos. Mas, como precisa o historiador da cultura, Clarence Glacken, em seu Traces on the Rhodian Shore (Traços no litoral de Rodes), o argumento permanecia clássico (girando em torno na noção de Providência) e as conjecturas (as de Buffon sobre a fauna americana, por exemplo) podiam ser completamente aberrantes, e mesmo absurdas ... a tal ponto que ele prefere considerar esse final do século XVIII mais como o final de um período clássico do que como o prelúdio para outra coisa. No entanto, agradava-me ver nisso um certo prelúdio. Em uma bonita frase, Glacken fala das ideias de Montesquieu e de outros que chegavam que chegavam às costas escocesas como madeiras flutuando antes de serem recolhidos por William Robertson, Adam Smith, David Hume, Adam Ferguson e Dugald Stewart. Em sua History of America, Robertson, que foi também doutor em Divinidade (fixado à ideia teológica e teleológica), fala de um "campo mais amplo"; e David Hume, em Diálogos, escrevia: "O campo é o mundo". Para retomar Glacken, este declara na conclusão de seu livro monumental que o novo período, que começou com revolução industrial e comportou uma especialização crescente nas ciências, seria ainda mais difícil para contar e descrever. A redação de tal livro me parecia, indiscutivelmente, uma obra importante. Mas, da minha parte, eu não sonhava absolutamente com isso. Ao me situar ao final desse novo período (a segunda parte da modernidade?), com necessidades e impulsos tomados em um movimento, meu desejo era, não o de escrever uma história, mas de abrir um campo. Eu continuava então a percorrer as margens do Atlântico ...

Em um dado momento, eu me instalei aqui, na Bretanha, em um parte da Costa marcada geologicamente por um fenômeno conhecido pelo nome de "complexo centrado".

O trabalho continua, de maneira múltipla.

Quando eu digo "trabalho", eu tenho sempre duas imagens na cabeça: a de um arrecife de corais, que cresce no silêncio e na obscuridade e, depois, emerge; e a de um glaciar. O glaciar se acumula em um centro, e se coloca em movimento, em seu tempo. Ele tem a sua própria potência motora, sua própria energia intrínseca, mas ele utiliza também todos os tipos de materiais: o ventre de um glaciar, a parte que trabalha enquanto a superfície reflete o céu, se assemelha ao papel de vidro com grandes grãos, os "grandes grãos" sendo rochedos. Em seu movimento, o glaciar "escreve" a paisagem, deixando traços morfológicos, deixando partes dele mesmo cá e acolá: encontramos rocha escandinava na Escócia, rocha escocesa nos Açores ...

Eu continuo ao longo da costa, de Penmard'h, digamos, até a região dos Abers, ao longo da costa norte em direção à ilha de Bréhat. E, no "ateliê atlântico", as imagens, as sensações dessas caminhadas reúnem leituras nas ciências -bio, - geo e - cosmo, na linguística (filologia) e na filosofia.

Geopoética em curso.

Kenneth WHITE

(Tradução de Jordélia Mendes Brandão)

[1] Trata-se aqui de uma resposta global a várias questões que me foram feitas diretamente na correspondência endereçada ao Instituto, de onde vem o caráter "pessoal" e epistolar deste ensaio.

[2] Vide Cadernos de Geopoética n° 2.

[3] Tradução de Kenneth White e Jean-Paul Michel in Souvenir de Bordeaux, William Blake & Co., Bordeaux, 1984.

[4] Tradução de Jean Mambrino, Granit, 1980.