Cadernos de geopoética




Carta sobre as origens da geopoética [1]

1.

Se grande parte do trabalho que eu efetuei concerne ao litoral (margem, costa,litoral, praia ...) - a tal ponto que aconteceu de eu falar sobre litoralidade (o que, em minha mente, dava um espaço físico à literatura e uma força oral à linguagem escrita) -, eu penso que é por várias razões.

Para começar, nós estamos aí próximos às origens biológicas, e não podemos ignorar os ritmos primordiais. Nesse espaço, nós temos um pé na sociedade humana - espaço habitado, inscrito - e outro no cosmos, o caos-cosmos, o caosmos, não humano. Provavelmente, é por isso que um velho texto pertencente à tradição que eu carrego, talvez, na moela de meus ossos - texto intitulado Imacalla in da thuarad (O diálogo dos dois letrados) - diz o seguinte: "O rio sempre foi o lugar predileto dos poetas".

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Um dos arcos insulares do Pacífico vai de Halmaheira, ao sul das Filipinas, até o Kamtchatka, passando pelos Pescadores, Taiwan, Okinawa, os Ryukyu e o Hokkaido. Vulcânicas, essas ilhas fazem parte do que se denominou o antigo «cinturão de fogo» do Pacífico. É o itinerário aproximativo que percorreu Lapérouse quando deixou Manila em abril de 1787 a caminho da costa de Tartaria e das obscuras regiões do noroeste do Pacífico. Foi um episódio importante de sua expedição - expedição que leio como uma viagem mental -, não apenas por causa da confusão cartográfica que reinava nessa parte do mundo, mas também porque era a única região que tinha «escapado à energia incansável do Capitão Cook». O que Lapérouse queria não era apenas fazer um mapa, mas deixar a sua marca.

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É a uma espécie de deriva intercontinental e intelectual que eu os convido, na qual iremos discutir geopoética e cultura e, ao longo da qual, abordaremos, espero, algumas ilhas interessantes, a fim de delinear os contornos, não de um novo “Novo Mundo”, mas talvez de um novo texto - eventualmente, contexto - mundial.


1.  A CRISE CULTURAL

Comecemos por certa consciência histórica e pelo sentido geral de uma crise da cultura que todo mundo experimenta em diversos graus, segundo tonalidades diferentes.

Lembraremos, em um primeiro momento, das duas cartas sobre A Crise do espírito, escritas por Paul Valéry, que apareceram, em inglês, em 1919 – antes de terem aparecido em francês cinco anos depois:

« Nós, civilizações outras, sabemos agora que nós somos mortais ... Nós ouvimos falar sobre mundos completamente desaparecidos, de impérios naufragados com todos seus homens e todas as suas engenharias, rebaixados ao fundo inexplorável dos séculos com seus deuses et suas leis, suas academias e suas ciências puras e aplicadas, com suas gramáticas, seus dicionários, seus clássicos, seus românticos e seus simbolistas, seus críticos e os críticos de seus críticos ... Mas, esses náufragos, depois de tudo, não eram assunto nosso. Elam, Ninive, Babilônia eram belos nomes vagos e a ruína total desses mundos tinha tão pouco significado para nós que a sua própria existência. Mas, França, Inglaterra, Rússia ... seriam também belos nomes. E, agora, nós vemos que o abismo da história é suficientemente grande para todos. »

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É paradoxal falar em geopoética em relação a Pessoa, que tem a reputação justificada por ser um poeta do «espaco de dentro». Ele mesmo reconhece que «vive constantemente no abstrato». Na «tragédia subjetiva», em cinco atos e em versos, em que ele retoma o mito de Fausto — e que foi talvez a grande obra de sua vida, permanecida inacabada —, ele faz seu herói falar no Monológo nas trevas do Vo ato:

Sou mais real que o mundo.

Por isso odeio-lhe a existência enorme,

O seu amontoar de coisas vistas.

Como um santo devoto

Odeio o mundo, porque o que eu sou

E que não sei sentir que sou, conhece-o.

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