Há algumas semanas, cientistas, que procuravam definir o início do atual período geológico conhecido pelo nome recentemente adotado de Antropoceno, propuseram o fim do período Holocénico anterior, utilizando o aparecimento de plutónio em sedimentos marinhos como referência estratigráfica. Isto levar-nos-ia a cerca de 1954. Algumas pessoas terão assim tido o infeliz privilégio de mudar os períodos geológicos durante a sua existência O plutônio de origem termonuclear é um símbolo do poder destrutivo da humanidade. Um símbolo muito óbvio, mas menos insidioso do que muitos outros modos de destruição.

Provavelmente nunca antes a humanidade esteve tão afastada do mundo da terra e da água que a sustenta. As civilizações não são apenas mortais, podem ser letais. Nos últimos tempos, constatamos que o ritmo de degradação se acelera. Um discurso catastrófico, e um sentimento generalizado difuso, fariam-nos acreditar que o nosso mundo está terminado. Atingimos os nossos limites geográficos há muito tempo. Os recursos naturais estão a esgotar-se. A Terra atravessa uma crise de vida, com uma sexta extinção em massa de espécies a aproximar-se. A cultura está fora do terreno.

Como Kenneth White salienta, já não existe uma grande narrativa fundadora que se mantenha: nem mito, nem religião, nem mesmo história. Não lamentamos isto, porque os nossos infortúnios não estão ligados a esta ausência. O que é chamado de «cultura» no nosso tempo é uma proliferação vazia, obedecendo na maioria das vezes apenas às leis do mercado todo-poderoso. Para que exista uma cultura digna desse nome, ela deve não só dar vida, mas também oferecer, cada um ao seu nível e de acordo com o seu próprio registro, uma referência que seja aceitável no cerne de um grupo social. Na Paleolítica, esta era a relação com o animal; já na  Antiguidade, a ágora filosófica e política; durante a Idade Média cristã, a Virgem Maria e Cristo; na era moderna, a crença na marcha triunfante da História. Independentemente do seu estatuto na sociedade, todos os membros poderiam referir-se a ela.

Hoje em dia, um número crescente de pessoas sente que nos falta uma fundação. A produção de conhecimento nunca foi tão importante e, no entanto, não sabemos o que fazer com ele, exceto continuar no tipo de excesso que os gregos denunciaram como arrogância. Trata-se de conquistar a massa de conhecimento disponível e transformá-la em algo que não se volte contra nós ou contra o mundo. É cada vez mais claro que a resolução dos nossos problemas requer um duplo cuidado não contraditório tanto no contexto global quanto no local. Portanto, na situação que é colectivamente a nossa nestas primeiras décadas do século XXI, não há outra escolha senão ousar. O objetivo da geopoética é desenvolver uma nova fundamentação.

 

1- AS FONTES DA GEOPOÉTICA

Inventado pelo poeta e pensador franco-escocês Kenneth White no final dos anos 70 (mas as premissas e as bases remontam muito longe de sua experiência) durante um périplo `a Labrador (La Route bleue, 1983[1]), a geopoética não surgiu do nada. Entre os precursores de uma visão renovada e mais rica do mundo apresentada por White nos seus ensaios estão Victor Segalen[2], Henry Thoreau[3] e Alexander von Humboldt. Kenneth White considera a Viagem de Humboldt às Regiões Equinociais do Novo Continente (30 vols., 1807-1834) como «uma peregrinação geopética por excelência», bem como o Cosmos. Essai d’une description physique du Monde (4 vols., 1847-1859) é uma daquelas sínteses magistral que as mentes do século XIX poderiam produzir. As contribuições de Humboldt para a ciência universal não são as únicas coisas que se destacam. Embora fosse um cientista de grande precisão e abrangência, não deve ser visto como um acadêmico austero mas sim como um «fervoroso amante» (Baudelaire) do mundo. Se ele viajou durante cinco anos, frequentemente em condições materiais muito difíceis, através de Nova Granada e Peru, Nova Espanha, de Cumaná a San Carlos, de Cartagena a Quito, de Lima a Veracruz, foi porque ele estava profundamente feliz lá. Isto é o que escreveu na sua chegada a Cumaná: «Estamos aqui, finalmente, no país mais divino e maravilhoso. Plantas extraordinárias, enguias eléctricas, tigres, tatus, macacos, papagaios e muitos, muitos índios puros, meio-selvagens, uma raça de homens muito bonita e interessante. Desde a nossa chegada, temos andado por aí como loucos. Sinto que serei feliz aqui.» Em Humboldt, o conhecimento está ligado ao ser, o ser está ligado ao meio ambiente e, através de uma preocupação estética, sente-se que a mente pode projetar-se para longe - onde se desenvolve uma cosmovisão rica e habitável, um cosmos: ‘um conjunto de relações’, escreve ele, ‘que é mais fácil de apreender, quando se está no local, do que de definir com precisão’. Poder-se-ia dizer que Humboldt passa por uma “Gaia Ciência[4]” para abordar a geopética.

Mas foi Kenneth White quem fundou esta teoria-prática. Ele é um daqueles trabalhadores de fundo (digamos, rapidamente, na linha de Nietzsche) que estão muito conscientes de que o seu trabalho é talvez uma última «última posição». Abrem um espaço — para a mente, para os indivíduos — e quem sabe o grande ponto de viragem que ainda poderá ser possível?

Em 1994, escreveu o seu primeiro ensaio exclusivamente sobre geopoética. Le Plateau de l’Albatros — Introduction à la géopoétique, cujo nome é emprestado do planalto que mal sai da água a mil milhas náuticas das Galápagos - «que melhor símbolo para um pensamento (o da geopoética) em emergência?» O Planalto de Albatross não é um manual de geopoética: «A ênfase aqui não está na definição, mas no desejo, num desejo de vida e do mundo, e no impulso». Não se trata de fundar um movimento literário, até porque a ‘poética’ deve ser tomada no sentido de ‘formação e dinâmica fundamental’ que se pode manifestar tanto nas ciências como nas artes ou na linguagem - não no sentido de ‘em relação à poesia’. Também não se trata de fundar um sistema, pelo contrário: permanecemos abertos e recusamos o dogmatismo porque a teoria geopética é inseparável da sua prática, é «uma ideia básica que não pode ser definida em abstracto mas que toma forma in vivo, com base em vários contextos».

O projeto geopético deve constituir, na história da mente, uma nova ferramenta ou instrumento para compreender e expressar a nossa relação com o mundo. Sucederá assim ao Organon de Aristóteles (o de toda a época clássica), o Novum Organum de Bacon (o da modernidade) e será um organum para hoje e para amanhã: Organum Geopoeticum. Em Panorama Géopoétique, um livro de entrevistas publicado em 2014, White precisa:

«O espaço de Aristóteles era o Mediterrâneo. O de Bacon já era um mar mais turbulento, estendendo-se para além das Colunas de Hércules: o Atlântico («o local menos fechado», diz Saint-John Perse), e, para além disso, o Oceano Mundial. Abertura total, com muitos riscos, muitas catástrofes no horizonte. Como diz Melville, em Moby Dick: ‘Todo o pensamento profundo vem do esforço intrépido da alma para manter a independência de um mar aberto’«. (PG 99-100)

A elaboração do paradigma geopético baseia-se numa análise alinhada com a análise da metafísica e niilismo de Nietzsche, à qual White acrescenta uma observação sobre a grande mediocridade cultural contemporânea. Chegámos ao fim da «auto-estrada ocidental». Trata-se de encontrar diferentes formas de ligar a poética ao geo, ou seja, de reconectar o pensamento à Terra de uma forma contemporânea. Para tal, devemos explorar um campo potencial de convergência que surgiu da ciência, filosofia e poesia: a geopoética. O método do nomadismo intelectual («norte, sul, leste, oeste - mundo antigo e mundo moderno») e o objetivo da geopoética é  o estudo das complexas relações entre o eu, a palavra e o mundo, a procura de uma nova expressividade, uma poética do mundo. Para este fim, «a abordagem geopética explora o caminho arcaico e a voz anárquica, antes de embarcar noutros caminhos sem nome».

 

2 - O ARCAICO NOVO MUNDO

A prática da deriva, do nomadismo e do vaguear é a base da geopoética, mas obviamente não se limita a ela. O grande vaguear americano começou muito antes dos Pais Peregrinos do Mayflower. Porque «os mundos em gestação e desenvolvimento tendem a congelar-se em impérios», Branco segue na história do Novo Mundo os passos dos povos errantes. A questão do «Novo Mundo» é libertada das suas fronteiras vespuccianas parar ser restituída à sua busca indefinida. E é preciso dizer que os conhecimentos relativos a colonização do continente americano estão em constante evolução.

Durante muito tempo, a colonização original das Américas foi considerada como uma grande migração de asiáticos através do Estreito de Bering durante o período Paleolítico, graças a um corredor sem gelo há 13.000 anos atrás. Esta era a posição inabalável dos pré-históricos americanos. Mas as descobertas têm vindo a acumular-se nas últimas décadas nos Estados Unidos, Chile e Brasil, o que tende a provar que a presença humana nas Américas não é apenas muito mais antiga do que a teoria do Estreito de Bering, mas que a povoamento colonização ocorreu em várias épocas e por meio de várias rotas.

Em algumas palavras, o povoado mais antigo, de acordo com a audaciosa teoria da pré-histórica e antropóloga franco-brasileira Niède Guidon, teria tido lugar desde a África Ocidental até à costa nordeste do Brasil cerca de 100.000 anos BP. Descobertas no Brasil, como na Pedra Furada ou Pedra Pintura (estudada por um dos meus antigos professores de paleontologia, Claude Guérin), mostraram que a colonização no Brasil está provada entre 11 000 BP e 38 000 BP. Hipóteses complementares apoiam com probabilidade uma migração do Norte da Ásia ao longo das costas ocidentais das Américas, a teoria da rota florestal de Kelp (algas costeiras), há 16.000 anos, quando o escudo glaciar ainda impedia o trânsito através do Alasca e do Canadá; há também uma teoria que afirma que a colonização da América do Sul teria sido feita a partir de Sondaland (a província das Ilhas Sunda no Sudeste Asiático) através do Pacífico Sul, há 50.000 anos. Os vários clãs ter-se-iam espalhado por todo o continente americano.

Porque é que valorizamos tanto estas derivas ? Porque «viagens e visão andam juntas, uma não é possível sem a outra». Por mais que os fundadores de cidades, estados e impérios, ao tornarem-se sedentários, sejam capazes de impor a sua visão humana da existência aos humanos, quando os nômades no desejo do mundo estão conscientes da ilusão da maioria dos objetivos humanos. Eles permanecem em contacto com o mundo e não baseiam a sua cultura, como os gregos fizeram a partir das suas cidades, numa desmedida e que é apenas um buraco negro.

Passemos destas considerações antropológicas e arcaicas para considerações contemporâneas e individuais — é isto que o nomadismo intelectual nos permite fazer.

 

3 - PARA ALLÉM DA OPOSIÇÃO ENTRE CITADE-NATUREZA

A fim de compreender os anseios do nomadismo intelectual e da geopoética na existência de um indivíduo que vive no Antropoceno, vamos seguir o itinerário de Kenneth White através dos seus primeiros trabalhos.

Em Les Limbes incandescents (1976), escreve:

«Sou um sobrevivente de um grande desastre e estou a tentar restabelecer as comunicações. Eu ando e escrevo pelas mesmas razões. Fazer os movimentos efetivos e renovar as relações perdidas» (LLI 76).

A geopoética é um cenário em movimento, uma abertura da existência ao mundo, que integra assim o nomadismo intelectual, mas também o nomadismo no sentido literal. No seu primeiro livro publicado, 1964, En toute candeur (ETC), White diz:

«O escocês é um nômade, como a Cita, o seu antepassado. Mas também há nele uma quietude. É este duplo deleite de movimento e tranquilidade que sinto no pântano. Talvez, originalmente, a área de vaguear fosse a grande estepe eurasiática que se estende desde a China até ao Danúbio; mas uma charneca no oeste da Escócia é suficiente. Do espaço para o movimento e a tranquilidade para a visão. Este é o terreno original da poesia. (ETC 63)

Onde quer que tenha estado, White sempre caminhou muito, seja na cidade ou na natureza selvagem. A priori, e de um certo ponto de vista não estaria errado, nada é menos geopético do que a cidade. E ainda assim ignorar a condição cada vez mais urbana da humanidade seria um grande erro. Seja em Glasgow ou em Paris na sua juventude, Kenneth White mergulhou nos meandros da condição moderna.

Desde os seus primórdios glasgowianos e parisienses, a prática na cidade na obra de Kenneth White tem estado frequentemente ligada à Ásia e, de uma forma menos esperada para este poeta do mundo exterior, às mandalas, estes mapas do cosmos. Das «caminhadas taumatúrgicas» (milagrosas) praticadas em Glasgow até as deambulações mandálicos do Limbes incandescents (LLI), White intensificou a sua prática da cidade fazendo do movimento do corpo uma exploração psíquica. Depois veio a descoberta de cidades asiáticas em 1975-76 e 1984, às quais regressaremos. O nomadismo intelectual de Kenneth White, inspirado pelos elevados reencontros dos espíritos iniciados no século XIX, bem como o seu uso do pensamento nietzschiano, deixam a suposição de uma desorganização das ilusões transmitidas sobre cidades como Hong Kong, Macau, Taipé, Banguecoque ou Tóquio, quase todas elas com uma representação antiga no Ocidente que por vezes se encontra mesmo na cultura popular. Muitas pessoas são aquelas (artistas, escritores, pensadores) que projetam sobre estas cidades preconceitos da época, como fantasmas que foram herdados de longe. Ou, a prática Whiteana destas cidades, todas inspiradas pela mandala, mas não se reduzem a ela. Longe de qualquer aculturação, dá precedência à abertura. Ao libertar-se da pesada bagagem ideológica e cultural do Oriente, White atribuiu a suas explorações urbanas na Ásia uma dimensão geopética. Do Limbes incandescents aos Cygnes sauvages, passando pelas Scènes d’un monde flottant e Le Visage du vent d’Est, o poeta e viajante transformou um espaço urbano que não é a priori propício à geopoética num horizonte atópico. A contribuição particular da Ásia para esta emergência merece ser destacada.

Vejamos isto com mais detalhe.

Em Les limbes incandescents, White cita o Vishvasara Tantra, que diz: «O que está aqui está em todo o lado; o que não está aqui não está em lado nenhum. (LLI, 141) Tocamos de perto nesta dialética de uma nova forma  entre aqui e noutros lugares, entre o local e o global. A questão da atopia não é uma questão daquelas  que podemos abordar  de passagem, e desse modo  é de fato esta perspectiva. Em Le visage du vent d’Est (VVE, 1980), um dos seus relatos de viagem (um guia de boas maneiras) na Ásia, White dá uma formulação alternativa à atopia. Este grande espaço de paz é também chamado, num livro chinês: o país que não existe:

«Voltemos à nossa Viagem à China Antiga». Tínhamos deixado de ler no ponto em que se falava de ‘lugares onde reina o caos e tudo flutua numa vaga imensidão insondável’ e de um ‘país que não existe’. As fantásticas errâncias   da Viagem levam ao território em que se estende o país que não existe. [...]

Isto é o que eu chamo o ‘mundo branco’.

Também de nomes.

Uma realidade.

Para além de nomes e formas.

O meu ser mais profundo vive num país que não existe — mas que é mais vivo que todas as nações, todas as instituições, todas as formas constituídas.

E este ‘país’ pode ser reencontrado em todos os lugares e não importa onde. » (VVE, 160)

Quando estes lugares são cidades, White afirma a sua predileção pelas cidades portuárias: «Peregrinações através da cidade, e de cidade em cidade, portos quase todos eles / Glasgow, Banguecoque / Antuérpia, Amesterdã, Barcelona / Hong Kong». (VVE, 230) A abertura destas cidades, mas especialmente a prevalência da água na sua geografia, coloca-as em relação a algo completamente diferente:

 «A pré-história de Banguecoque é um pântano úmido, e muitas vezes, se olharmos para as ruelas que levam às grandes artérias da cidade moderna, ainda podemos vê-la: o silêncio úmido e vegetal da selva atravessada em todas as direções pelo labirinto de canais.

Um outro mundo.» (VVE 230)

Por outro lado, em Tóquio, apesar de todos os seus esforços, nada pode ser feito: enquanto Hong Kong ainda oferece vistas do mundo flutuante, Tóquio parece ter-se afundado em algo completamente diferente: a cacotopia[5]. A lembrança do Basho o fez visitar Ueno. Encontra-se quase a caminho do norte, uma vez que Ueno é uma espécie de Estação Norte de Tóquio. Mas a partir do norte encontra a miséria dos emigrantes da província no Parque Ueno. Um jovem poeta japonês que foi seu companheiro e guia durante alguns dias admite: ‘Não resta nada do encanto da velha Tóquio’, diz o jovem poeta, ‘as casas de chá desapareceram, os velhos canais deram lugar a auto-estradas, mas mesmo aqui, mesmo nos ambientes mais turbulentos, ainda existem alguns vestígios’ (CS, 26). Tal como os ‘salões do amor’, a seção ainu do Museu Nacional, o mercado do livro Jimbocho com os seus relatos de viagem dos tempos de jadis e mapas antigos, ou ainda o mercado do peixe Tsukiji parecem a Kenneth White ser os únicos fornecedores de espaço habitável. Claro que não se encontra, nas penas de White, este lugar comum do pensamento que retrata Tóquio como uma metáfora deum Japão tendo  com sucesso conciliado a tradição e a modernidade. White luta para encontrar um atrativo em Tóquio. Tal como as colinas matrizes lhe permitiram sobreviver ao inferno de Glasgow, o mercado de peixe satisfaz as suas «necessidades de sensações e imagens», porque a «vida marinha abundante ali» é uma fuga para o arcaico, para a «vida noutro lugar» (CS, 24).

A experiência da cidade no trabalho de Kenneth White não é, como uma visão rápida ou mesmo simplista nos faria acreditar, baseada numa antinomia com a natureza. É verdade que a cidade é frequentemente marcada pelo selo do acosmismo e pelo horror moderno. Mas pode ser, para o nômade - reconhecidamente mais difícil do que um espaço natural não desenvolvido - um lugar que se abre para o Grande Lugar. Como prova todo o trabalho de White, é o espaço que coloca então um  problema. Foucault recordou que o espaço de localização (hierarquicamente dividido em aberto/fechado; profano/sagrado, etc.) foi sucedido no século XVII pela expansão de um espaço infinito e infinitamente aberto de Galileu, antes deste último espaço ser substituído pela localização, que é definida pelas suas «relações de proximidade entre pontos ou elementos; formalmente, podem ser descritas como séries, árvores, treliças. A prática urbana de Kenneth White revelou-se extrema na medida em que não está inscrita, o dentro como o fora, nestes espaços estriados (para retomar  outra terminologia, de Deleuze & Guattari) mas sim num espaço liso ou, mais precisamente, num espaço aberto ao não-lugar. O que a sua experiência nos transmite através da teoria-prática da geopoética não é nem o enraizamento no lugar, nem o pavor de uma dissolução do ponto no infinito, nem a desvantagem de se conectar a em rede ou em um rizoma dos lugares - mas a abertura do lugar à presença do não-lugar.

Em Les affinités extrêmes (AE, 2009) ele enfatiza : «Se falo de tocar novamente em baixo, de recolocação, isto não significa de forma alguma um simples localismo. Como diz Whitehead em Adventures of Ideas, como toda a teoria de campo diz, não existe um localismo simples, cada lugar é como um ‘nó’ no fluxo universal» (AE, 123). Dito de outra forma:

«Quanto `as pedras sobre as quais caminhamos [aqui na Côtes d’Armor - nota do editor], se algumas têm uma origem local, elas vêm, na sua maioria (mais uma vez, sabemos isto o suficiente?), de origens diversas, tendo sido trazidos aqui pelos glaciares da Escandinávia ou da Escócia. Quando se sabe que estas coisas aqui, já não sentimos mais isolada num ponto da terra, estamos ligados, por força das coisas , ao resto do mundo, ainda podemos pensar em termos localistas, mas a partir de agora será no sentido de um localismo aberto» (Finistère, p. 59). Para White, o localismo simples está do lado da história, de uma idealização excessiva, confinante e frequentemente retrógrada de um lugar (região, país ou nação), enquanto que o localismo aberto está do lado da localidade como um espaço primário e elementar, aberto a uma atopia. Assim, é de salientar que a geopoética não tem nada em comum com a mitologia da Mãe Terra ou com a hipótese de Gaia.

O trabalho da geopoética consiste não só em reler o mundo, mas em recontar o mundo, começando do zero. Ao escolher o prefixo geo- para abranger todas as dimensões do mundo, a geopoética inventada por Kenneth White não deixa de fora nem a litosfera, nem a hidrosfera, nem a atmosfera, nem a biosfera, nem a esfera de pensamento. Melhor ainda: a geopoética coloca-os a todos numa relação dinâmica. Este é um empreendimento enorme, fora de normas. Mesmo se White é quem dinamiza o todo porque é ele quem funda e explora este campo com mais temeridade, ele não está sozinho. Teve sempre um sentido de organização. Ao fundar o Instituto Internacional de Geopoética em 1989, seguido pela sua arquipelagização em 1994, e pela sua presidência do Instituto durante vinte e quatro anos, ele assegurou que esta teoria também seja uma prática que todos podem se apropriar de acordo com o seu contexto local. De fao, muitas ilhas surgiram, aqui e ali, ao longo do tempo, tornando a geopoética conhecida enquanto eles descobriam o seu próprio potencial.

 

4 – ECOLOGIA E GEOPOÉTICA

Muitas pessoas em todo o mundo estão recorrendo à geopoética porque a sua preocupação com relação ao estado do mundo natural está a crescer drasticamente. A sua problema ecológico leva-os à geopoética, sem que estejam bem cientes da relação entre um e outro e das suas diferenças. Proponho agora que abordemos esta questão.

A geopoética, escreve o seu inventor Kenneth White, é «algo muito mais profundo e ambicioso do que a ecologia». A ecologia preocupa-se com as formas e organismos vivos num ambiente imediato. A geopoética vai muito mais longe, a um contexto mais geral, e abre perspectivas mais amplas — existenciais, intelectuais, culturais. Várias tentativas no desenvolvimento social posterior deveriam ser feitas para alargar a compreensão da ecologia. Mas havia sempre vestígios de mitologia, religião e metafísica misturados. Se a geopoética foi mais além da ecologia, também envolveu mais do que a poesia escrita, como é geralmente entendida, ou a prática da filosofia. » (Kenneth White, Entre Deux Mondes, 239)

Num livro de entrevistas que abordava esta questão, ele deixou bem claro o seu pensamento: « Digamos primeiro, rapidamente, que a ecologia, devidamente compreendida, está incluída na geopética. É, em termos geológicos, uma das camadas da geopoética. Lá se vai a perspectiva vertical. Quanto à perspectiva horizontal, a geopoética está alguns passos à frente da ecologia.

Vejamos isto com mais precisãolhe.

Mesmo que a ecologia ainda esteja longe de ser entendida em todo o seu alcance, o termo tornou-se pelo menos familiar, e desde o momento da sua emergência, há mais de um século, o seu alcance de significado e aplicação tem crescido consideravelmente.

De fato, atualmente, várias ecologias podem ser distinguidas: a ecologia básica, estudada por Haeckel, nomeadamente a relação entre os organismos e o seu ambiente; a ecologia humana e social discutida por H. G. Wells (The Prospects of Homo Sapiens) nos anos 40; e a ecologia de Gregory Bateson[6], nomeadamente a ideia de que as manifestações mais produtivas da mente humana estão ligadas ao grande sistema biocósmico não humano (Towards an Ecology of Mind, Nature and Thought), que surgiu nos anos setenta. Por ter sido, originalmente uma sub-secção da biologia, o termo abrange agora uma série de preocupações que são frequentemente bastante desfocadas nos seus contornos, enquanto ao nível fundamental há pouco afastamento do mitológico, do simbólico, do arquetípico e do sagrado.

O que é certo é que se o «ambiente» (uma palavra pouco adequada, porque deixa o Homem no centro) não for preservado e mantido em toda a sua complexidade, a existência em breve não terá base, a cultura não terá fundamento, e as práticas particulares não terão significado. [...]

Foram feitas tentativas na comunidade ecológica para satisfazer a necessidade, o objetivo, que acabei de indicar. Eu pensei, por exemplo, na Associação para o Estudo da Literatura e do Ambiente, fundada em 1992 em Reno, em Nevada. Também se tem falado de ecopoesia. Posso concordar com a proposta geral de que o sujeito humano constrói o seu ser através da interação com o ambiente natural como habitat. Mas este movimento não tem muita coerência, não tem muita força. Nas referências dos seus defensores, encontramos, uma mistura de [influências], ao lado de poetas como Wordsworth e Thoreau (já muito diferentes um do outro), ecologistas como Aldo Leopold ou Arne Naess, um pouco de darwinismo, um pouco de fenomenologia, um pouco de taoísmo, budismo, gandhismo, e elementos de tradições indígenas.

A única teoria-prática que satisfaz plenamente o desejo de Bateson é a geopoética. Volto à sua frase: «Em breve estarei pronto para as sinfonias e albatrozes».

Foi por outras razões que titulei a minha introdução à geopoética Le Plateau de l’Albatros, mas a ligação ao vocabulário de Bateson é mais do que uma coincidência». (Panorama géopoétique, 24)

A geopoética continua a ser a melhor teoria-prática para conduzir a humanidade não só a uma verdadeira reconciliação com o mundo natural, mas também para lhe mostrar o espaço onde poderia criar, de acordo com o seu próprio potencial, um mundo humano. A diferença entre ecologia e geopoética, como não terá escapado a ninguém, é particularmente uma questão de raízes lexicais. Em La Terre engloutie ? Une philosophie de l’écologie (LTE, Kimé, 2020), Arnaud Villani coloca a questão da ecologia com grande radicalismo.

Para Villani[7], a grande guerra entre cultura e natureza começou no período Neolítico, com o gesto de multiplicar a natureza para a controlar melhor: tratava-se então de garantir a subsistência, mas também de contrariar a autonomia da natureza, substituindo-a gradualmente.

Para ele, a fundação de toda a ecologia consiste em reaprender a comunidade - com base na casa ou na família, que é o significado dos oikos radicais. «A ecologia nunca é apenas uma opção política, é uma essência do homem que quer responder ao seu nome, perante os homens e o mundo» (LTE, 143), uma discussão com a totalidade dos elementos do universo. Villani identifica em White «[o] acolhimento cósmico que convida à sua mesa, tão grande como o mundo, todas as coisas vivas ou inertes, importantes ou desprezíveis, transitórias ou duradouras, para uma partilha onde toda coisa viva ou inerte é tratado em pé de igualdade e vem dizer a sua palavra. Que tudo deve dizer a sua palavra, esta é a grande ideia que White  não para de antecipar e anunciar constantemente. E que os homens deixam de acreditar que estão apenas entre eles »[8].

Segundo Villani, a casa a cuidar é o habitat comum de todos os seres naturais (qualquer que seja o seu «reino»), e se até agora a natureza pura (Umwelt) e a cultura pura (Welt) seopuseram em detrimento da primeira, Villani propõe voltar atrás na objetificação, na reificação do Exterior, e atribuir à cultura a tarefa de criar conceitos vivos, seguindo a natureza.

A reflexão sobre a ligação humana com a casa, oikos ou domus, é partilhada por outros pensadores. O antropólogo anarquista James C. Scott explica no Homo domesticus — une histoire profonde des premiers états (2017), que a revolução neolítica foi seguida por uma revolução urbana, pela qual a humanidade não só domesticou algumas espécies animais e vegetais, mas de uma forma auto-domesticada e se tornou escrava dos seus animais e plantas. As consequências desta sedentarização voluntária, considerada como um verdadeiro avanço para a espécie humana, estão longe de ser negligenciáveis e incluem um empobrecimento da sensibilidade humana e do conhecimento prático do mundo natural, um empobrecimento da sua dieta alimentar, uma contração do seu espaço de vida. A isto junta-se o abandono de uma existência relativamente igualitária dentro de pequenas bandas móveis e dispersas de caçadores-coletores, e o desenvolvimento de epidemias devido à promiscuidade homem-animal - a causa provável do desaparecimento de estados arcaicos. Scott considera que «a noção de domesticação deve ser entendida num sentido mais amplo, como o esforço contínuo do Homo sapiens para moldar todo o seu ambiente ao seu gosto». Ele coloca a seguinte questão : uma vez que a «domesticação» mudou a composição genética e a morfologia das espécies cultivadas e dos animais na domus [...], como é que também nós fomos domesticados pela domus, pelo nosso confinamento, pela maior densidade populacional e pelos nossos novos padrões de actividade física e organização social?» (HD, 35-6) Tal como os animais domesticados se tornaram menos conscientes do seu ambiente, os seres humanos restringiram a sua visão do mundo.

Para o filósofo Peter Sloterdijk, o conceito de domesticação é diferente da meditação de Villani sobre os oikos, a casa, e também diferente da abordagem dos antropólogos anarquistas. Na sua análise paleontológica, Sloterdijk considera a domesticação como consubstancial ao humano, porque estabelece uma equivalência entre habitar o mundo e habitar a casa do Ser, uma habitação de natureza esférica que nos ofereceria uma visão do mundo e uma ação sobre ele durante todas as fases da nossa existência.

Em La Domestication de l’Être — Pour un éclaircissement de la clairière (LDE, 2000), Sloterdijk, fiel ao seu vocabulário e redescobrindo as preocupações de Nietzsche sobre a educação no sentido mais amplo, considera a aventura humana como sendo principalmente de auto-manipulação (e evolução plástica luxuriante). No entanto, estas autotécnicas foram durante muito tempo, no domínio material (mas não poderiam ser alargadas a indivíduos e aos povos?) e devido à metafísica, técnicas que utilizam materiais para fins que são «fundamentalmente indiferentes ou alheios a esses materiais» (LDE, 90) [9]. Esta é uma forma de colocar o mundo das coisas em cativeiro ontológico - chama-lhes allotechnics em oposição à homeotechnics, pois estas «visam menos a reificação do que a compreensão das condições internas do que coexiste»: por outras palavras, afirma a necessidade de técnicas que não forcem as coisas ou os homens,  que se baseiem numa compreensão da natureza biológica e social do homem e - formulo à minha maneira - que se empenhem num diálogo com a natureza.

Por todas estas razões, é evidente que a raiz ecológica - além de ser atualmente utilizada em todos os contextos possíveis, marca acima de tudo uma ligação histórica com a domesticação ocorrida pelo menos desde o período Neolítico, e com ela, um estreitamento da visão do mundo, da percepção da sua riqueza e da qualidade de vida[10]. À escala da história humana, que certamente não é apenas a das ideias e muito menos a das sociedades, a geo-raiz transporta uma força maior, não apenas transformadora mas sobretudo fundadora, que não esconde a ‘casa’. A razão disto é bastante simples: enquanto a casa (eco-) está ligada ao seu ambiente, do qual pode ter uma vista panorâmica, a terra (geo-) não pode ser percebida na sua totalidade, mesmo do espaço, por causa da sua rotundidade. Basear uma nova etapa do caminho da humanidade no geo permite ligar o indivíduo não só ao solo que o suporta, não só à paisagem que se estende horizontal e verticalmente até fazer a volta do globo, mas também ao cosmos, do qual a Terra faz parte.

White sublinha assim a importância de uma experiência de pensamento, que envolve um espaço de vida, movimento e um sítio que resulta desta vida em movimento. «Desta forma», escreve White, «não estamos num sistema conceptual, estamos naquilo a que prefiro chamar paisagem- psico mental» (TFF, 43). Baseamo-nos na «natureza das coisas», por outras palavras, na física, no dado fenomenológico do mundo. É para recuperar um pensamento poético semelhante ao dos pré-Socráticos, ou mesmo dos Taoístas - mas para o nosso tempo, que White dedica a sua obra.

A natureza que deve ser permitida para se manifestar é a física dos gregos. Quando os romanos traduziram a física para natura, como esta palavra vem de nasci, «nascer», pensaram em manter a noção de «nascer» e «crescer» presente em ϕυεσθαι. Estes são os encontrados em Heraclitus e Empedocles, que escreveu um livro intitulado Physics. A palavra physis é assim, em primeiro lugar, uma pergunta feita sobre a origem das coisas e o seu crescimento. Este pressuposto do seu devir é acompanhado pela ideia de que o seu crescimento é espontâneo e, ao mesmo tempo, regulado por uma necessidade inerente a cada um como em todo o universo, o cosmos, por um dinamismo profundo e oculto.

Em The Fundamental Field — Thought, Poetics, World (2021), em diálogo com White, o filósofo Jeff Malpas sublinha na obra de White «o papel absolutamente central do lugar como abertura do mundo, e que isto acontece numa relação dupla entre movimento e descanso, residência e viagem, partida e regresso» (TFF, 73). Para Malpas, estas características são as da poesia e da filosofia, mas também da geopoética, e mesmo da topologia e da hermenêutica - o que torna o campo da grande obra poética, assim afirmado, um lugar particularmente rico de convergência.

Multiplicamos os pontos de vista para compreender a relação entre a ecologia e a geopoética. Assim, mesmo o pensamento ecológico o mais exigente parece negar a si próprio o que a geopoética oferece: a formação de um mundo humano em harmonia com a Terra; um mundo onde o pensamento e o corpo estão situados, um mundo aberto aos outros lugares que falam dentro dele. Para além das questões terminológicas que estão longe de ser triviais, a geopoética abraça a ecologia mais profunda e leva o pensamento muito mais longe, onde a frescura e a espontaneidade são a recompensa:

«Chegar a um lugar

onde há

nem complicações

nem  explicações

vai-se passo a passo

agarrando-se inteiramente a

o que está lá. » [11]


O que desejo para todos os meus ouvintes, especialmente brasileiros e sul-americanos de hoje, como presidente do Instituto Internacional de Geopoética, é que se apropriem da teoria e da prática geopoética do seu próprio lugar e a abram a todos os outros lugares, a fim de refundar o mundo.

 

Régis POULET

Presidente do Instituto Internacional de Geopoética

Verão 2022

(este texto, traduzido por Camila Gomes Sant’ Anna e Lirandina Gomes,
foi lido em 1°Seminário Internacional em Geopoética,
Salvador de Bahia, Brazil, 2 de setembro de 2022)

 



[1] La route bleue foi um livro americano lançado por White em 1983, no qual o autor relata a sua experiência de viajante (desafios cotidianos e encantamentos) no território canadense de Labrador, a partir de Montréal.
[2] O francês Victor Segalen (1898-1919) foi médico da marinha, etnógrafo, escritor, poeta, teórico de arte, linguista e crítico literário. Vale ressaltar as suas viagens como explorador ao território da Polinésia e da China.
[3] O Norte-americano Henry Thoreau foi poeta, naturalista, pesquisador e historiador, se destacou pelo seu livro Walden, no qual relata sobre a vida simples junto `a natureza.
[4] Gaia Ciência é uma obra de Nietzsche publicada em 1982.
[5] “Para além dos incómodos, há o enorme tédio da vida urbana moderna, um encalhamento, um ofuscamento, que esconde mal uma descarga pontual («a festa»). Um historiador da cultura das cidades, Lewis Mumford, chama a tudo isto uma cacotopia” (Kenneth White).
[6] Gregory Bateson (1904-1980) foi antropólogo, cientista social, linguista e semiólogo inglês.
[7] Arnaud Villani, « L’œuvre complète comme pensée du monde », Europe (Revista), Kenneth White, Juin-Juillet 2010, p. 247.
[8] Arnaud Villani, « L’œuvre complète comme pensée du monde », Europe, Kenneth White, Juin-Juillet 2010, p. 247.[9] Ibid. p. 90. Spinoza é citado por ter expresso da forma mais lúcida como a ligação da potência ao potencial deve realizar-se sem demência nem constrangimento : "Quando digo, por exemplo, que posso fazer o que quiser com esta mesa, não quero dizer que tenho o direito de fazer da mesa uma coisa que come erva." (in Tractatus politicus, IV, 4).
[10] Pois sim, as condições de vida exigidas pela agricultura eram (são?) mais difíceis que as da caça e da colheita...
[11] Kenneth White, « Voyage à Skjolden », in Mémorial de la terre océane, Mercure de France, 2019, p. 173.