1.

Moro uma velha casa de pedra  - granito e xisto - na costa norte da península amoricana. Essa casa consiste em três construções. Foi num que foi outrora, em baixo, o estábulo, a granja, que se instalou há dez anos o que gosto de chamar de oficina atlântica, ou ateliê geopoético. É lá que prossigo com minhas meditações, é lá que elaboro meus métodos.

Senti a necessidade de acampar um lugar, e de falar da habitação desse lugar, antes de falar de uma obra.

Num ensaio intitulado « A ecologia dos atos », Abaham Moles fala da necessidade de uma nova antropologia do espaço.

 

Propondo alguns elements, ele distingue :


a) uma zona de segurança,

b) uma zona de distração,

c) uma zona de meditação,

e pergunta-se qual é a relação optimal entre as três.

Eu não penso que as proposições de Moles vão muito longe, mas se deve conservar esta noção de uma antropologia do espaço.

Para resumir, haveria o porto (que pode também tornar-se prisão) dos hábitos ; o mundo flutuante (onde nos perdemos) ; a casa das marés, uma habitação no fluxo.

Heinz von Foerster, em «Notas para uma epistemologia dos objetos vivos», fala do « contexto pleno ». O meio, de acordo com ele, é percebido como a residência de objetos estacionários, móveis ou mutantes, e a questão é posta : uma experiência primeira, fora do sistema de representação convencional, dos hábitos, das fixações psíquicas é possível ?

2.

Em me ouvindo falar de um lugar onde se viver, de distância, de silêncio, uma jornalista me perguntou recentemente se eu era misatropo. Apressei-me em responder-lhe, claro, por uma assertiva negativa – mas precisando, entretanto, que uma antropologia crítica está na origem da minha filosofia de vida e da minha concepção de arte. Não epilogamos sobre a questão. Eu gostaria de fazê-lo aqui, alargando minha proposta : a geopoética é desumana ? A geopoética não seria um humanismo ?

Todo mundo aqui se lembra do último quadro de Bruegel, que se intitula O Misantropo. Vemos uma homem velho, e, ao seu lado, tomado numa atmosfera elevada por uma cruz, um anão disforme que lhe rouba sua bolsa. Não vou desenvolver a interpretação do simbolismo, que me parece bem evidente. Podemos ver, no quadro, a pequenez do espírito encher o mundo inteiro, e se esforçar para reduzir a influência de tudo o que a transgride, a transcende. A esta imagem, acrescenta-se aquela da Torre de Babel, que representa a confusão logística e conceitual em que mundo se debate. E em seguida há a Queda de Ícaro. Enquanto que os trabalhadores, pastores e marinheiros (geopoetas...) prosseguem seus trabalhos sobre terra e mar, e que um sol amarelo brilha sobre as montanhas, Ícaro, este faustino louco, com ambições insanas e desmedidas, faz um pequeno splash na água, de longe. Mas é, sem dúvida, as paisagens de Bruegel de que eu mais gosto : O Dia de inverno, sombrio, com sua terra vermelho-marrom, suas árvores, suas montanhas. Fora dela, será um ceu ultra-sereno onde voa um corvo somente, ou o caos azul-amarelo-marrom de uma tempestade. Gosto de pensar, de uma maneira geral, em todos os trabalhos que se desenvolvem do Atelier des Quatre Vents d’Anvers, que eu aproximo, com prazer, àqueles de Hokusaí em seu Atelier du Nord.

Eis homens que vivem uma vida densa, que se alinham com a sinfonia dos elementos, que aliam vigor e visão, humor e profundidade, truculência e transcendentalismo, e que não têm tempo a perder com o demasiado humano.

3.

Para falar do nosso contexto atual, quem não sente a necessidade de um espaço mais fresco, fora do ambiante  demasiadamente humano? Em  Cool Memories, Jean Baudrillard escreve o seguinte : « Somente a desumanidade  das coisas me emocionou, e mesmo assim, era incapaz de transpô-la na minha própria vida.” Confessões como essas são raras. Ainda mais raros são os trabalhos que nos fazem sair do demasiado humano, que aumentam a sensação de vida, integrando ao humano, o não-humano.

Muito recentemente ainda, num lugar que reúne para mim lembranças de Rousseau, de Buffon e de Bachelard (trata-se, evidentemente, de Dijon), um amigo filósofo, um filósofo amigo, disse-me, durante um banquete platônico, que eu era iconoclasta. Isso me interessou. Tanto que, recentemente, perguntei-me em que sentido e de que maneira eu era iconoclasta, extrapolando rumo à pergunta : a geopoética é iconoclasta ?

À primeira vista, pelo menos no que me diz respeito, isso parece difícil de aceitar, haja vista a quantidade de imagens (ícones) que se encontram na minha oficina de trabalho. As paredes estão cobertas delas, o chão, repleto. Somente evocarei aqui algumas categorias, e alguns exemplos de cada categoria.

O que choca primeiramente são, sem dúvida, as pedras (aceitar-se-á que pedras possam ocupar uma função iconológica ?). Há pedras em todos os lugares, no chão, nas prateleiras. Por vezes, elas me chamaram a atenção por suas formas, simples assim. Outras têm incrustrações cristalinas, ou são cobertas de concreções marinhas, ou contêm fósseis. Várias são postas sobre pilhas de manuscritos, de acordo com seu tamanho ou sua cor, em correspondência com a importância da pilha e a cor da camisa que contém as folhas. Outras justaposições desse gênero me agradam : um grande pedaço de pedra cinza incrustada num olho branco (círculo branco, pupila negra) encontra-se ao lado de The Dawn in Britain de Charles Doughty…No início, não marcava a origem das pedras : o simples fato de pensar que elas vinham de diversas regiões da terra bastava-me. Mas, há algum tempo, eu anoto os lugares onde as encontrei : Causse Méjean, Aubeterre, Anse Macabou, La Caravelle (Martinica), Tobago Keys, Skagen (Báltico), Montserrat, Hokkaïdo…

Quando um amigo japonês, pintor, passou no meu ateliê, pedi-lhe inscrever, em ideogramas, sobre três pedras que havia posto de lado, três koan (frases para meditar) : « Andar só sob o céu vermelho », « A cada passo, o vento puro », « É isso mesmo ! ». No começo, pensei em montar essas pedras, pondo-as, por exemplo, em grandes blocos. Mas, finalmente, deixei-as do lado de fora. Gosto de olhar para elas debaixo de chuva ou no sol. Elas são patinadas. Uma delas, a cinza, que tem os ideogramas vermelhos, cobre-se lentamente de uma fina camada verde.

Ao lado das pedras, os ossos, as ossaturas : omoplata de caribu, crânio de pássaros. Também há fotografias de objetos vindos de campos paleotílicos : as caras de cavalo e as madeiras de rennes esculpidos e gravados na grota de Insturitz, por exemplo. E há também desenhos xamânicos, em que o xamã é reduzido ao seu esqueleto por uma espécie de reducionismo ontológico radical.

Sobre as paredes, estão espetadas várias imagens (gravuras e desenhos) de pássaros em particular, como se a redução fosse o prelúdio ao vôo : ganso-patola, corujas, garça cinza, escrevedeira-das-neves – e o novo albatroz descoberto recentemente na ilha de Amsterdã, no oceano Índico, entre a Austrália e a África do Sul, por dois pesquisadores do Instituto des ciências da evolução de Montpellier : diomedea amsterdamensis.

Em seguida, penso nos mapas : naquele das zonas ecológicas do final da glaciação ; naquele da zona dos estepes na Eurásia ; naquele da borda atlântica da nappe glacial escocesa, naquele do mundo segundo Estrabão, naquele do mundo segundo Heródoto ; naquele segundo Dionísio Periegeta; naquele do périplo de Pytheas ; naquela das grandes migrações indo-éuropeias ; naquele do domínio cimério no século VIII antes de nossa era ; naquele da expansão dos Citas ; naquele das relações pré-colombianas através do Pacífico ; naquele do périplo de Laperusa ; naquele das Antilhas e do golfo do México com suas chegadas...

Há, assim, em minha casa, uma proliferação de imagens.

Essa coleção de imagens preenche uma função difusa e múltipla. Não se trata de arte propriamente dita, mas, talvez, de proto-arte, de proto-geopoética. Tal ou tal imagem ou objeto pode me servir de base de meditação. A presença preponderante de pedras e de ossos oferece-me o que poderíamos chamar de sensação paleolítica. O todo represente, talvez, uma coerência inédita : um mundo protoplásmico. Chego a experimentar, nesse ateliê, uma grande excitação mental. Mas, todo poeta, todo artista sabe que a questão não é como atingir a excitação, mas como fazer dessa excitação uma exactitude. Eis a exigência.

Voltarei a essa questão de iconoclastia.

Mas, antes, proponho fazer um desvio no lugar onde a contrevérsia iconofilo-iconoclasta (« a favor ou contra a imagem ») deu muita confusão. Falo, evidentemente, de Bizâncio.

 4.

Qualquer pessoa que tenha visitado, de maneira assídua, as academias de Roma e de Florença sente, a curto ou longo prazo, um cansaço diante do excesso de material humano : todas essas estátuas, todos esses quadros... É com uma sensação de alívio que descobrimos, em Ravenna, dentro de um pequeno edifício de tijolos vermelhos, um mosaico de luz onde trona o Pantocrátor, com olhos cheios do eterno.

Já é Bizâncio.

Situada entre a Europa e a Ásia, numa região pouco povoada e mais primitiva do que o Ocidente romano, de costas para o Mediterrâneo, de frente ao Mar Negro e por trás do Nordeste, Bizâncio pretendia ser uma cidade exemplar, animada por uma vida intelectual e artística intensa. Como, uma vez que se fez alguns studia byzantina, não ser atraído por figuras como o monge Método, o viajante Cosmas Indicopleustês, Fotios, proprietário de uma biblioteca extraordinária, por um escritor como o Marinos Phalieros, ou por uma mulher como Sofia Paleóloga que se casou (que desperdício !) com Ivan Moscovita. Cidade intelectual, e cidade artística : penso nesses códices « púrpuras » (escritos em prata por cima do velino púrpura) produzidos nos scriptoria, em todos os trabalhos em mosaico e em ourivesaria. Destacam-se o sobrehumano e o transcendental.

O sistema central do espírito é : Pantocrátor, Paraíso, Terra. Mas, esta terra, situada de maneira tão baixa na hierarquia, é entretanto maravilhosamente presente. Basta olhar o o rio Jordão en mosaico azul, ou em pavimentos brilhantes que são mapas da terra e do oceano, para que se convença disso. Adoramos a complexidade, e nossa abstração vai longe. Aqueles que fazem longas abstrações são os iconoclastas : os destruidores de imagem. Eles têm uma ideia tão elevada do Abstrato, que acham inadmissível representá-lo por imagens de santos, por qualquer iconologia humana, antropomorfe, seja ela do próprio Cristo. O que tais iconoclastas do século VIII fazem, a meu ver, é somente acentuar um aspecto já presente da cultura bizantina. Nesta cultura, inspirada na Revelação, deixava-se, em prol da Revelação, um trono vazio.

O objetivo dos iconoclastas bizantinos era o de atingir uma perfeita transcedência, para além da intervenção, do intermediário, duma iconologia demasiadamente humana. Talvez pudéssemos dizer que o objetivo do « iconoclasta » geopoeta é aquele de chegar a uma perfeita imanência.

Mas, há só se tem uma primeira fórmula. Prossigamos com nossas meditações, passo a passo, de questão em questão, de espaço em espaço.

5.

Numa sociedade, em estado de cultura, a nossa, que, em se consagrando a uma proliferação galopante de imagens (em que podemos observar a revanche, impotente, da imaginação há muito intimidada pelo pensamento racional), não conhece « a potência poética do símbolo » (Gilbert Durand), uma certa quantidade de espíritos da modernidade tardia defendem o retorno à imaginção simbólica e à reabilitação do símbolo sagrado, epifânico, transcendental. Para eles, o mal começou com Aristóteles ( o pensamento conceitual), passou pelos iconoclastas (« uma tamanha iconoclastia não se desenvolveu sem graves repercussões na imagem artística pintada ou esculpida » - Gilbert Durand) ; em seguida por Descartes, e Espinoza. Ao longo deste processo, assistiríamos a uma degradação, e mesmo a uma extinção da faculdade simbólico-imagente, desde as alegorias decorativas da Renascença até à confusão berrante da « civilização da imagem » contemporânea. Podemos compartilhar as recusas de tais espíritos, podemos aceitar parcialmente suas análises, em permanecendo totalmente céticos quanto à necessidade, ou à possibilidade do retorno que eles preconizam. Pessoalmente, em relação a tudo o que é simbolismo sagrado, de tudo o que é teologia, ou ontologia transcendental, em relação a tudo o que se quer arte espirituaista, simbolista, sou um cético do Himalaia.

Não é somente porque percorri as ruas de Atenas do Norte com Hume, porque dividi com Montaigne em sua livraria, porque encontrei Pirro nos Pirineus e deambulei com Sextus Empiricus nas ruelas de Luxemburgo ; é também porque, na arte, o que sempre me chamou atenção foi o algo além. É o que está aqui, presente, na carreira de Bibemus de Cézanne, ou na cerejeira de Van Gogh. É algo que se encontra em estado difuso, latente no meu ateliê geopoético. Há nisso tudo algo que não é nem símbolo sagrado, nem vitrine de imagens triviais.

A viagem intelectual e artística, cultural, tal qual a vejo, é ir do sagrado ao Vazio, do mundo absoluto ao mundo aberto, passando pelo mundo flutuante.

Trata-se somente de outra fórmula. Mas, re-conhecer o mundo, fazer um re-conhecimento do mundo, de lugar em lugar, e testar algumas formulas já significam estar no caminho de um recomeço.

Tentemos agora avançar ainda mais em nossas investigações de prima geopoetica. Partindo, desta vez, do estado gradiente que conhecemos.

6.

Há algum tempo, desde o século XVIII, na verdade, toda uma tendência do pensamento consistia em reduzir a metafísica na moral. Penso em Hume, em Kant, em Voltaire… Com o passar do tempo,  essa moral transformou-se totalmente em social. Tudo é doutrina social, discurso social, conversa social... E esse discurso soa cada vez mais inócuo, resultando, numa fração significativa da população, em autismo, em afasia, em infantilismo, que não acha saída ou escapatória, se não é na violência. Em face desse estado de sociedade, compreende-se que alguns queiram voltar à moral, e outros, até à metafísica ou à religião.

Penso, com efeito, que é necessário que voltemos, pelo menos no começo, à metafísica.

Em utilizando, no meu título (o ponto de partida deste ensaio), as palavras « meditações e métodos », evoco, evidentemente, a figura de René Descartes, que, com Aristóteles, é o anátema dos simbolistas do Sagrado e dos figurativos do Absoluto, já que ele reduz o símbolo ao signo, e quer se desfazer da imaginação « em excesso ». Em Descartes, na « dúvida metódica », meu ceticismo se reconhece. Certamente, não ocorre o mesmo com a maneira como sinto o mundo. Se, nos Princípios, Descartes aborda a questão da formação do mundo, ele apressa-se em explicá-la, não se atém às formas, ainda menos à multiplicação das coisas, e acha, sem dúvida, rapido demais, sua « ideia clara e distinta », comprimindo toda a extensão na cogitação. Mas, gosto de seu desejo de clareza, gosto de sua pesquisa de uma “verdade inexorável », e tenho tendência a me inventar um Descartes  mais sensível à multiplicidade das coisas e às formas, um Descartes « re-nascido[1] dos mapas », um Descartes que, em sua busca pela verdade inconcussable, se contentaria, durante um certo tempo, como o sábio no Paradis retrouvé de Milton, em pegar pedrinhas na praia. Em lendo Espinoza, vejo-o, de seu escritório em Rhynnsburg, polindo vidros – sempre esse desejo de clareza e de transparência. Eu volto a Aristóteles, à física peripatética. Gosto de seu gosto pelas investigações (historiaï), que vão de encontro a todas as Investigações (do absoluto, do Graal, de Deus, etc.). Mas, ao lado desses pensadores racionalistas, leio autores mais místicos, como Erigene – gosto o plural de seu sunt lumina (há luzes), ou o Ibn Arabi, dito Ibn Aflatûn (filho de Platão), pelos seus itinerários epifânicos. Foi deste campo complexo que nasceu a noção de geopoética.

Parece-me, em levando a metafísica aos seus extremos, até aos seus limites, o que se encontram, no final do caminho, é o vazio e o fenômeno. E esta conclusão, que forma uma introdução, pode ir muito mais longe do que a fenomenologia. Merleau-Ponty, por exemplo, seguindo o método fenomenológico, descobre a « prosa do mundo ». Mas, não a sentimos, esta prosa do mundo, em Merleau-Ponty, não a vemos; os fenomenologistas (Husserl, o primeiro, bem entendido) não consegue faze-la soar.

Em falando de « soar », penso nos sons, nos barulhos que ouço em volta do meu ateliê : barulho do vento, gritos de pássaros, sussurros de folhagens... Penso igualmente a outras coisas. Chego, após uma longa sessão de trabalho, a sentar-me nos degraus do meu ateliê para tomar um chá. Gosto do son que faz a chaleira quando a ponho sobre o granito dos degraus. O que me faz pensar em Gauguin, que declarava que o que ele queria fazer em pintura era o equivalente ao som que fazem os tamancos sobre o granito. E isso evoca, também, para mim, o suzu (pequeno instrumento em bambu que fica num riacho ao lado de uma rocha e que produz, em intervalos regulares, um clac bem agradel) que vi um dia no jardim de um poeta eremita em Quioto.

É este som, esta música, que gosto de ouvir nas obras de arte. É o som de base da geopoética. Pode estar na origem de todo um desenvolvimento, mais é preciso que ele esteja presente.

7.

Reconheço que podemos falar novamente, aqui, de uma certa iconoclastia, de uma certa recusa, senão de imaginação, pelo menos, de um certo excesso de imaginário.

Com efeito, há muita reticência em relação ao narcisismo narcótico do imaginário, do fechamento subjetivo no  imaginário, que, a meu ver, é somente o oposto do positivismo – uma compensação. Guardo uma certa distância em relação às fixações do imaginário: prefiro os arquivos aos arquétipos. Não falo somente do lirismo fácil e convencional, o que alguns chamam de “poesia” (cujas equivalências encontramos nas artes plásticas). Esses elementos que eu recuso, encontramos até mesmos nos melhores. Em Bachelard, por exemplo. A poeticidade que ele prefere parece-me um pouco cômoda. Quem não sente que ele se contenta, na maior parte do tempo, em descascar imagens estéticas tal um espírito religioso que conta as contas de seu terço ? Em Saint-John Perse, por exemplo, quem não sente a inflação psíquica e metafórica de um texto como este aqui (que ele escreveu para Braque) :

« O pássaro, de todos os nossos consanguíneos mais ávidos por viver, leva aos confins do dia um singular destino. Migrante, e perseguido pela inflação solar, ele viaja à noite, porquanto os dias são por demais curtos para sua atividade. Em tempos de lua cinza cor de visco da Gália, ele povoa de seu espectro a profecia das noites. E seu grito na noite é grito do amanhecer em si mesmo : grito de guerra santa de arma branca. » E se posso ficar atraído pela churinga da tradição australiana, por exemplo, eu sei que me é impossível pensar em termos de genealogia sagrada, e e de ver nela o corpo de um ancestral. Gosto do barulho, e do ex-abrupto, destacado das conotações e das convenções, livre de um excesso psíquico.

Disse que amava os arquivos e as investigações peripatéticas. Gosto também das « investigações » de Heródoto, que Quintiliano descreve como sendo dulcis et candidus et fusus (agradável, lúcido e difuso). O que nos leva a falar mais precisamente de linguagem, de estilo, de expressão.

8.

Sempre houve, no Homem, ou pelo menos em alguns espíritos, o desejo de uma « linguagem natural ». É eminentemente o caso de Jacob Boehme. Bohema pensa e escreve num contexto cristão, é logo o Verbo de Deus que ele ouve e vê nas coisas – mas se pode extrapolar. Para Boheme, o verbo fiat está ainda em formação e este verbo « forma e une ». Não há, fundamentalmente, divisão entre a palavra e a coisa. Se a linguagem « adâmica », aquela do « primeiro homem », foi perdida de vista, podemos encontrá-la, basta estudar profundamente a linguagem, e ler a « assinatura » das coisas. Este será o trabalho dos pansóficos, tal qual encontramos, não somente em Boehme, mas, por exemplo, em Khunrath de Bâle, em seu De Signatura Rerum. Pensamos também, claro, nos cabalistas, e em certos adeptos da Rosa Cruz, e podemos seguir o fio até Platão de Alexandria em seu Opificium mundi e Eusébio de Césareia em sua Praeparatio evangelica. Eu não seguirei as tentaticas de Boehme para nos convencer que a palavra Wasser corresponde perfeitamente ao elemento líquido que alguns chamam de aqua ou água, nem outras aberrações da pansofia. Mas, esta noção de um liber naturali, de uma linguagem que seria o elemento formativo da harmonia do mundo, me interessa.

Se o espírito humano é incontestavelmente marcado por uma ingenuidade naturista, ele veicula igualmente, e isto é de uma outra maneira mais nefasto e restritivo, uma patologia anti-naturista.

É ela que predomina na nossa cultura há séculos. É ela que criou nossos hábitos, e uma grande parte de nossa teoria. E é ela que suscitou reações quase sempre primárias e simplistas ? mais seria possível destruir os hábitos, esses moldes, esses modelos, e encontrar uma linguagem que seja fresca e mais completa ? É o que parece sugerir Jean Grenier, quando diz (Réflexions sur quelques écrivains), de uma maneira por demais melancólica, evidentemente, que se conseguimos acabar com os hábitos, « um céu, no qual poderíamos voar, abrir-se-ia ». Certamente, destruir os hábitos não é fácil. « É preciso começar », diz Grenier, « por um desmembramento feito com violência”. Mas, parece-me que, hoje em dia, a ciência traz ajuda a essa necessidade.

9.

Na « neo-geopoética » de François Dagognet (Épistémologie de l’espace concret),trata-se, a partir de um novo olhar sobre as ciências da terra, de um « texto sem autor » marcado por uma « violência original ». Mas, no contexto dessa meditação livre, é sobretudo sobre as pesquisas de um biofísico que gostaria de discorrer, e sobre a ideia de um poeta.

Em um ensaio, «Conscience et désirs dans les systèmes auto-organisateurs», Henri Atlan propoe constatar o fim do Homem como « sistema fechado » e não somente de tirar consequências disso, mas de avançar numa abertura deixada por este fim de ilusão. Tratar-se-á, a partir de então, de conceber o fato de existir como um « processo aberto ». Em outros termos, o Homem foi um hábito ruim, ou uma cumulação de hábitos ruins. Mas, os hábitos não fazem o homem. E nenhuma necessidade há, nessa queda do humanismo, de invocar os princípios metafísicos (O Ser, etc.) ou a não sei que força mistériosa. A concepção do homem, como « sistema aberto », evita não somente o mecanismo, mas também o Mistério. Nada de angústia ou de pânico. Essa abertura permite uma « consciência de si mesmo como lugar de criação e de inovação » e « dá um lugar central à irrupção do radicalmente novo, não a partir do nada, mas do caos ». E este « caos » não é mais um conjunto informe, ou uma ameaça agressiva. Pode-se ver nele uma auto-organização, que certos biólogos (penso em Varela e Maturana) chamaram de auto–poïesis.

E podemos ir ainda mais além. Pois, descobrir forças organizadoras na matéria em si mesma, constatar uma lógica dos sistemas auto-organizadores não é, afinal, « achar de maneira renovada e afinada » (ou seja, fora de tudo o que é patético e de toda poeticidade sentimental) « uma linguagem que as coisas nos podem comunicar » ? Esta « linguagem das coisas » corresponde à linguagem do homem : uma linguagem do homem livre dos hábitos ruins, e da falsa poesia. Como praticar esta liberação, como estabeler o contato? Não pela vontade (volontarismo faustiano), nem por uma projeção imaginativa (menos fantasiosa ainda, ou escassamente conceitual) sobre o real, mas pelo querer, uma « faculdade inconsciente de auto-organização son o efeito das coisas do meio». O que pode resultar disso é uma « existência unificada ».

Parece-me que, a tais concepções, se podem anexar (e os anexam, efetivamente, na geopoética) certos desenvolvimentos no campo da poética. Falando, por exemplo, de Dante, Osip Mandelstam declara que o poeta é « fator de instrumento e não produtor de imagens ». E ele insiste nisso, aliás : « Dante é, por excelência, o poeta que torna o sentido móvele desintegra a imagem ». E ainda mais : « Ele é movido por tudo o que queiramos, exceto pela imaginação ». Não nos situamos mais no psiquismo, nem da sentimentalidade, mas na instrumentalidade e na investigação. O poeta não « se exprime » mais, ele é o estrategista de um tema, o protagonista de uma poética.

10.

Talvez eu possa permitir-me, para terminar, citar algumas passagens de meu próprio porcesso poético aberto, deixando, a outros, o cuidado de representar o equivalente plástico.

Eis aqui, por exemplo, um poema de Terre de diamant («Sur les murs d’une chambre ancienne»), que indica a saída dos hábitos :

Sobre o primeiro muro

havia uma estampa de Hokusai

sobre o segundo
uma radiografia de minhas costelas

sobre o terceiro

uma longa citação de Nietzsche


sobre o quarto

nada –

foi este que atravessei

antes de chegar onde estou.

 

Eis aqui ( é um excerto de «Lettre de Harris», do Mahamudra ), o momento da meditação, da criação e da dissolução da imagem, permitindo a entrada em um espaço diferente do narcisista-imaginativo :

O discípulo  
passa longas horas
em silêncio, imóvel

para atingir
o estado da calma perfeita
para além de todo pensamento

liberto enfim do eu
ele entra
no território do vazio.

Um pássaro mergulhão
refletido
na água límpida
quebra sua imagem

Na sala
de ondas que rugem.


Eis aqui (excerto da « Maison des marées», do Atlantica), o processo aberto :

eis-me então aqui a nascer
no território  
caminhando
no branco da manhã
caminhando, observando
escutando
flores amarelas
que dançam ao vento
um corvo sobre um galho
que corveja  
o riacho que reflete o ceu
nas rugas cinza-azuis
página branca, de algas varec 
o andar altivo
dos pássaros ostraceiros
um caranguejo azul que tateia uma poça
concha brilhante
rumo a uma escrita
que visa mais alto
do que a arte dos versos
com generalidades lisas  
e jeremiadas  
arquipélago atlântico
o sentimento de algo
a recolher
o espírito tateia
como um caranguejo azul numa poça
dança ao vento
reflete o ceu em seu fluxo
voa alto
deixa marcas na areia  
jaz deixado ao acaso
sobre o laço de alto mar  

E eis aqui, para concluir, uma apresentação do ateliê geopoético que faz parte integrante dessa casa das marés, e do trabalho que é feito nela :

um lugar para trabalhar
(trabalhar
elaborar tudo)
um lugar para acolherr
uma estranheza
esta estranha atividade
(filosofia? poesia?
prática? teoria?)
duma cumulação de fatos
rumo a um poema plural
para além do geral

Kenneth WHITE

(tirado dos atos do colóquio « Géopoétique et Arts plastiques »)

 

Tradução de Márcia Marques-Rambourg

 



[1] No texto original, Kenneth White utiliza o primeiro nome de Descartes (René) e faz o jogo de palavras entre « re-nascido » e « re-né ».